quinta-feira, 20 de novembro de 2008

44. Uns e outros


- Estou dando um tempo...

- Mas nesse banco? Nessa praça?

- Por que não poderia? Tem algum inconveniente?

- Vai me dizer que você ainda não sabe?

- Sabe o quê? Do que você está falando?

- Há muita fofoca e muito falatório na cidade em torno desse banco...

Otávio já ia se zangando. Se o cara quisesse puxar conversa, que fosse mais direto. Não precisava ficar contando piada, ou inventando situações para que pudessem bater papo. Ia pedir licença para se retirar...

- É. Pelo jeito você não está entendendo, não é mesmo? O mais novo divertimento dos linguarudos desse lugar é fazer fuxicos dos gays da cidade, só porque há algumas semanas nós começamos a nos reunir todos os sábados aqui...

Otávio ficou em silêncio. O outro continuou:

- Você não sabia?

- Não.

- Não tem medo de ficar falado?

- Nem um pouco. Afinal, quem paga as minhas contas? Quem sofre as minhas dores? Quem goza os meus prazeres?

- Nossa, você é mesmo um cara de peito...

- Olha, Renato, nunca vivi uma situação tão difícil como a que estou vivendo agora e talvez, por

ter enfrentado minhas dificuldades, estou começando a ver algumas perspectivas na minha

vida...

- Ok. Já entendi. Acho que você tem toda razão.

- Quer saber do que mais?

- Se você quiser dizer...

- Hoje vou participar do encontro na praça. Quero ser o mais novo integrante?

- Não me diga que você também é gay?

- Por que o espanto?

- Você é uma pessoa tão reservada...

- Mas posso deixar de ser, não posso.

A conversa prosseguiu, outros rapazes chegaram, um grupinho foi se formando. Ao ver Otávio

ali, a princípio ficavam com cara de espantados, depois o gelo se quebrava e a o papo continuava. O grupo contava agora com uns dez rapazes. Os carros passavam...

- Os curiosos já estão vindo conferir. Disse Renato.

Uma nova voz veio se juntar ao grupo.

- Quero um lugar de destaque na vitrine. Era o Carlos, acabando de chegar. Ficar aqui na semana passada me rendeu dois encontros nesses dias...

- Com quem? Exclamaram os curiosos.

- E você acha que eu vou favorecer a concorrência? Eu só conto o milagre! O santo? Nem com reza!

- Egoísta! Exclamou o Júlio.

- Meu bem, você não está sabendo lidar com o seu borogodó. Um deles era um senhor respeitável dessa sociedade.

- Hum, tá podendo, hein, bicha!

- Claro, meu bem...

Nenhum dos rapazes que vieram se juntar ao grupo despertava o interesse de Otávio, apesar de várias trocas de olhares ocorrerem. Contudo, entre uma conversa e outra, a observação do movimento e as risadas ruidosas do grupo, por rápidos minutos, ele voltou a se perder em seus pensamentos. Do outro lado da rua, passou o lavador de carros, aquele com quem estivera no hotel. Passara com uma bíblia na mão, vindo da igreja em companhia de uma moça. Seria sua irmã, esposa, namorada? Uma tristeza quis invadir-lhe, mas o grupo o resgatou do ostracismo.

- A gente tá virando purpurina, tá todo mundo comentando!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

43. Confusos labirintos


A avenida estava movimentada. Otávio encostado no pátio da loja de conveniência observava os carros e as pessoas que passavam com a garrafa de cerveja nas mãos. Quem o avistasse logo notaria que seus olhos pareciam ver através da agitação uma outra realidade. Somente seu corpo estava presente ali, toda sua atenção se voltava para algo que apenas ele enxergava.

Na verdade, ele ouvia. Em seus tímpanos, a conversa com o pai repisava como se um aparelho estivesse com a tecla “repeat” acionada:

- Aqui você vai continuar se escondendo e se negando o tempo todo. Só posso te dizer que vou fazer o que puder para te ajudar.

- Obrigado.

- Mude-se daqui pra uma cidade maior, onde existam mais possibilidades. Eu posso te ajudar até

você se estabelecer novamente.

- Não sei se seria o caso.

- Aproveite enquanto você é jovem. A vida passa rápido.

Ele tinha agora mais essa possibilidade, mas a idéia de sair daquele lugar se misturava com a figura daquele pai que lhe apareceu de uma hora para outra, tão desconhecido dele, tão inesperado, que ele se perdia.

Resolveu sair daquele ambiente agitado. Pôs-se a andar por uma rua que cortava aquela outra tão animada pelos flertes da juventude da cidade. Mais adiante tinha uma pracinha tranqüila. Foi para lá que se dirigiu

Sentou-se em um dos bancos. Continuou se movimentando pelos canais de seu pensamento. O pai ainda se misturava com a possibilidade de se ausentar-se dali, quando ouviu:

- Sozinho por aqui?

Em pé à sua frente estava o Renato, o viado mais conhecido e falado da cidade.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

42. Filho de peixe...




Sábado à tarde, último final de semana de férias. Poucas perspectivas a não ser pensar no trabalho. Nem mesmo planejar algo para fazer à noite o excitava. Foi ao bar em que bebera com Frederico tomar uma cerveja.

Estava sentado com o olhar perdido em algum ponto da rua, pensamento longe. Alguém tocou seu ombro esquerdo. Virou-se. Seu pai o encarava.

- Mas que solidão é essa?

- Vim aqui passar umas horas.

- Sozinho?

- Não havia ninguém pra me acompanhar.

- Posso sentar?

- Claro.

O garçom aproximou-se trazendo um copo e perguntado se estava tudo em ordem, se desejavam algo. Responderam tudo estava bem.

O pai retomou a conversa.

- Por que você não volta pra casa? Morar em hotel é tão impessoal. Acentua a solidão.

- Pai, eu sempre fui um cara sozinho.

- Eu sei, sou seu pai. Você nunca teve muitos amigos.

- O senhor já se perguntou por quê?

Aquela pergunta lhe saiu de chofre. Ele não tinha mais nada para esconder. O pai que cuidasse com o que ia dizer.

- Sei que na situação em que você se encontra, pode ser fácil culpar sua mãe... Os escândalos que ela fazia as poucas vezes que seus colegas acidentalmente foram em casa, mas eu acredito que há uma série de fatores, inclusive me culpo bastante por isso. Talvez se eu tivesse sido um pai...

- Pai, não vai adiantar nada o senhor achar que poderia ter feito diferente. Agora já passou e só é possível pensar daqui pra frente e nunca daqui pra trás.

Ele se assustou com aquilo que lhe saiu da boca. Na verdade nunca tivera muita intimidade com o pai. Sempre o achara alguém acomodado e de poucas palavras. E se assustava com isso que agora estava saindo de sua boca soando como um conselheiro de auto-ajuda para alguém que nunca teve muita participação nos seus conflitos.

- E o que eu poderia fazer de agora em diante.

E agora? O que diria? Houve uma pausa entre eles até que o pai quebrasse o silêncio.

- Há alguma coisa que eu possa fazer por você?

Um pomo parecia enroscado na garganta de Otávio. Ele se esforçava para dizer algo, mas nada saía. Sua vontade era dizer tudo o que pensava daquele homem que durante sua vida inteira parecia-lhe ser um estranho em casa. Saindo de manhã para o trabalho, voltando à hora do almoço, depois se ausentando à tarde e voltando á noite para esconder-se na oficina que mantinha nos fundos da casa e ali ficar até poucos minutos antes de ir dormir. De repente sentiu vontade de chorar e uma lágrima chegou a ameaçar a sair-lhe pelas pálpebras, mas se conteve. O pai percebeu o estado embargado do filho.

- Depois que você saiu de casa, percebi o quanto eu fui um pai ausente. Tanto tempo tive pra estar junto de você e somente agora é que eu percebi que você era alguém dentro de casa, que era meu filho, que poderia precisar de mim... Você não podia ser diferente. Eu também sempre fui muito sozinho, apesar de ter vocês, mas hoje eu consigo entender que eu é que me isolei, que eu poderia ter feito diferente...

- Pai, já te disse, isso agora não vai adiantar nada...

- Sei lá poderia ter acompanhado mais a sua vida e a de seu irmão... Não sei o que poderia ter feito, mas poderia ter tentado...

Havia uma comoção entre os dois. A situação começou a ficar insustentável.

- O senhor fez o que foi possível fazer... Vamos parar de falar nesse assunto, porque daqui a pouco vamos parecer dois bêbados chorando numa mesa de bar e quem passar por aqui vai achar muito patético pai e filho chorando entre copos de cerveja.

- Você tem razão... Vai ficar muito estranho presenciar choro entre quem nunca teve muita intimidade, não é?

- Como?

- Você quer evitar o assunto. Acho que é por isso. Nunca tivemos muita intimidade. Nunca soubemos nada um do outro...

- ...

- Por exemplo, nunca me preocupei em saber de suas namoradas, se você estava gostando de alguém, nunca quis saber das tuas angústias...

- E de que adiantaria o senhor saber disso?

- Não sei, como eu disse, talvez pudesse ser diferente...

- Eu também não sei...

Para Otávio, a conversa estava ficando perigosa. Era melhor interrompê-la a qualquer custo. Precisava inventar uma desculpa para se retirar dali.

- Queria te perguntar uma coisa, mas não sei como fazer? Retornou o pai.

E essa agora?

- Tenho medo do que você vai perguntar. Respondeu Otávio de maneira automática.

- Por quê?

- Acho que tenho medo do que você pode pensar de mim... Não gostaria de mentir para preservar você.

De dentro dele vinha uma coragem que tornava seu rosto uma brasa viva.

- Você não precisa me preservar de nada... Ás vezes, penso que eu é que deveria ter te preservado de mim... A sua solidão me preocupa... Me sinto responsável por ela. Te acho muito parecido comigo.

- Não. Somos diferentes...

- Por quê?

- Como você mesmo disse, você era solitário tendo uma família... Quanto a mim – endureceu a fala – minha perspectiva é de pura solidão.

- Posso saber por quê?

- Sou gay. Como vou constituir família por aqui?

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

41. Um suicida


A notícia que estava na boca de todas as pessoas na manhã seguinte foi o suicídio do Demerval, um cara de quase trinta anos. Ele era casado, tinha dois filhos pequenos, muitos conflitos com a esposa e corria à boca pequena que assediava os rapazes e os homens da cidade.


As justificativas para sua morte eram que ele tinha um caso com um rapaz, o qual trabalhava no sítio da família e que o rapaz tinha pedido as contas e se mudado para outra propriedade no município vizinho. Demerval o procurara durante o Carnaval, procurando convencer o moço a voltar a trás na decisão, mas o moço não se comoveu com o pedido.

Depressivo e desesperado, Demerval se enforcou com uma corda no suposto local em que mantinha seus encontros amorosos com o ex-empregado.

Uns comentavam assustados, alguns fazendo piadas, outros constrangidos e havia ainda aqueles que diziam não encontrar problemas no amor dos dois.

Na falta do que fazer – ele não iria ao velório, pois não era amigo do defunto, nem da família – Otávio passou grande parte do dia navegando na internet e pensando nos possíveis motivos para o que acontecera ao rapaz. Lia blogs e pensava nos motivos por que criara o seu. A princípio pensava em divulgar a sua literatura, mas uma desesperança batia em sua mente ao constatar que raras eram as páginas que tinham exclusivamente essa intenção. Isso significaria que ficção não era propriamente um interesse dos freqüentadores de blogs.

Por que e para quem escrevia então?

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

40. Para onde vai a maré?


Um compromisso que já se institucionalizara naquelas férias de Otávio era o carteado nas noites de quinta-feira, na casa do sargento, junto com Lalo e o Oliveira. Antes mesmo que o pai de Jardel ligasse à tarde, ele contava como certo que iria à sua casa à noite – não sabia ao certo, se pela constância dos convites nas últimas quintas-feiras ou porque ultimamente vinha pensando a todo instante em Jardel e imaginava que ele deveria estar de volta da viagem de Carnaval.

O rapaz, contudo, não tinha retornado. Soube dele pelos comentários dos pais. Soube que estava novamente em casa do amigo, em São Paulo, notícia que foi recebida por ele como uma estocada profunda de ciúme. Em seus pensamentos esse fato apenas confirmava o que o levara a discutir com Jardel. Ele fora apenas um passatempo, uma aventura, para o estudante que estivera um longo tempo em uma grande cidade e voltara para uma cidadezinha interiorana e não tinha com o que passar o tempo.

Os pais de Jardel ainda comentaram ainda que o filho decidira fazer o curso de especialização e que, como as aulas começariam na segunda, iria ficar por lá. Voltaria quando tivesse um tempo para buscar as roupas.

- Você gosta muito do Jardel? Não é? Perguntou Lalo a Otávio.

E essa agora? O que aquela pergunta significaria?

- Sim, a gente se conheceu há pouco tempo, mas ele foi muito gente boa, tanto que eu estou aqui, com um parceiro definitivo para jogar truco.

O sargento deu uma olhada de soslaio e uma risada, como se quisesse comentar algo e o restante da noite foi de tédio e pensamentos distantes, tudo temperado pelas piadas de Lalo.

- Quando gay sai para caçar onça, sabe como ele espera a pintada?

- Não.

- De quatro.

Risos.

- Agora, sargento, você sabe que o Oliveira tem uma dúvida?

- Já vem ele com gracinha... Complementou o Oliveira.

- Não. É sério

- Outro dia ele me falou: “Me diga uma coisa. Se você fica bêbado uma vez você é alcoólatra?” Eu respondi: “Não”. Ele continuou: “E se você dá o cu uma vez, você é viado?”

Risos.

Para fugir do ostracismo que de repente abatera sobre seu estado de alma, Otávio ficava a flertar com a promessa de Frederico. O que iria propor o boiadeiro? O que imaginar? De qualquer modo, não convinha pensar que era algo que o livraria definitivamente do tédio que ele sentia naquela hora. Com certeza seriam encontros temporários para algumas horas de sexo, viagem para ficarem alguns dias juntos, ou quem sabe, alguma prática sexual nova – alguma tara do boiadeiro. Em todo caso, a perspectiva, em relação a Frederico, ao imaginar um companheiro para viverem juntos uma relação duradoura, parecia ser de solidão. Mas aquelas palavras ao telefone o deixavam intrigado e a voz do peão circulava em intervalos por seus ouvidos.

Era esperar para conferir.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

39. Apenas um telefonema.


Passado o feriado, só restava a Otávio esperar a volta ao trabalho depois das férias insípidas de janeiro. Mas havia ainda uma esperança pulsando em seu peito em relação a Jardel e ele ficava imaginando o outro chegando da viagem de Carnaval e fazendo contato para voltarem às boas. Em um desses devaneios, o telefone tocou e ele prontamente atendeu. Ele respirou fundo. Do outro lado da linha, estava Frederico:

- Como foi seu carnaval?

- Bem, solitário e monótono, sem nenhuma novidade.

- Se soubesse, teria te convidado para uma folia no Carnaval?

- E por que não convidou?

- Porque imaginei que você tivesse compromissos com seus amigos. Você não falou nada.

- Você não perguntou nada.

- Não vamos ficar fazendo cobranças por coisas que já passaram.

- É, foi falha na comunicação. Talvez a gente tenha que se comunicar melhor, não esperar um

momento oportuno para dizer, porque se eu soubesse que haveria essa possibilidade, não a teria

desperdiçado.

- Mas podemos criar uma outra. Semana que vem estou pensando em passar por aí. Você vai estar disponível?

- Retorno ao trabalho, mas posso encontrar um tempo para estar com você.

- Na terça-feira, pode ser? Chego à tarde e à noite a gente vai no leilão, pode ser?

- Mas é claro que sim.

- E que tal a gente aproveitar o instante?

- Como?

- Fazer uma prévia por telefone. Eu já estou sentindo seu corpo próximo do meu. Seu calor me

excitando, a sua mão desabotoando minha calça, minha camisa...

Otávio começou a enriger-se. Aquilo era uma novidade para ele.

- Hum... Que brincadeira, mais gostosa. Você é capaz de imaginar o que estou massageando?

- Claro que sim. Então me agarre pelas costas, que eu massageio pra você. Deixe que eu sinta

toda sua saudade me pressionando com raiva por trás... Aproveite para me apertar contra o seu corpo... Você é capaz de imaginar onde estou?

- Não.

- Estou aqui, sozinho no meio do campo, abraçado a um tronco, louco de vontade de me

encontrar com você... E cheio de inveja. Você sabe por quê?

- Não.

- Por que estou assistindo um touro perseguir uma novilha, que, agora de patas estendidas,

espera que o macho dê o salto.

- Você está vendo isso? Ela deve estar sentindo também uma gostosa língua no meio das ancas.

- Claro, estou vendo também detalhes de uma musculatura de cor rosa que se ergue no ar, é uma carne bem sadia.

- Sua mão consegue tocar isso tudo.

- Estou com ela entre as pernas, com as narinas dilatadas, mal posso esperar para sentir a circulação do novilho dentro de mim...

O resfolegar sibilante era ouvido dos dois lados da linha.

- Está sentindo a minha baba correndo, encharcando a sua bela bunda roliça. Nada é mais quente que o centro da sua anca...

Um alvoroço interior acudia-lhes em remoinho.

- Ah, finalmente o touro montou a novilha... Eu posso sentir a sua rigidez latejante do animal.

- Está sentido pulsar?

- Sim... Pode movimentar com mais agilidade, não pare...

Aquilo durou um instante. Do fundo de seus corpos, das mais íntimas entranhas, os dois estavam a sentir um esbraseamento, fazendo-a reverberar em vibrações fulminantes. O que se ouviu foram gemidos e respirações arquejantes até que suas mãos pararam de tremer... Houve então uma longa pausa.

- Me espere na terça. Vou te fazer uma proposta irrecusável.

- Hum, será que vou poder aceitar?


- Aguarde...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

38. Tão longe, de mim distante...


Dia de Carnaval. Feriado sem graça. A princípio achava que era por que vivia em uma cidade interiorana, mas depois que começou a ler blogs na internet começou a perceber que todos os cantos são interioranos. Acreditava que a única diferença é que em lugares maiores a possibilidade de ter amigos gays era maior devido à concentração de pessoas, e não precisaria passar o dia sozinho. Mas o jeito foi mesmo contar os segundos, os minutos, as horas e esperar o dia passar. E o foi o que fez.

Na quarta-feira, tomou coragem e foi falar com a mãe. Esperou que o pai saísse para o trabalho e bateu à porta.

- Por que você não telefonou como havia combinado?

- Precisava de um tempo.

- Mesmo que isso matasse sua mãe de aflição?

- Mãe, eu não vim aqui para me justificar diante do que fiz ou deixei de fazer. Vim dizer que

estou morando no hotel. Quero cuidar da minha própria vida...

- Ah, meu Santo Antônio, valei-me...

- Não começa invocar os seus santos que eles me dão urticária... Estou procurando meu caminho...

- Mas eu e seu pai já estamos velhos, não podemos ficar sozinhos.

- Vou continuar aqui na cidade. Se precisarem de mim é só chamar...

- Seu irmão também dizia isso. Casou, desapareceu, liga a cada três meses...

- Quantas vezes a senhora liga pra ele? E a senhora já se perguntou por que ele não liga para vocês?

- Você está querendo dizer é que eu é que sou a culpada...

- Não, estou dizendo que todos somos responsáveis... Não podemos reclamar que ele não liga pra nós, se a gente também não liga pra ele. E se a gente tem saudades dele, não custa nada ligar, ainda que ele não ligue pra nós...

- A gente cria filhos, pensa que sabe tudo deles, que um dia vai receber um agradecimento, mas quando menos se espera, vem a punhalada...

- O que você chama de punhalada, eu chamo de necessidade imperiosa de...

- Pare com seu palavreado difícil e irônico!

- Pare com sua chantagem emocional.

- Eu sou assim e não vou mudar meu jeito porque você quer...

- Não quero que você mude... Estava dizendo que eu preciso mudar. Preciso experimentar outras realidades que não sejam fazer as vontades de uma mãe, por quem eu me sinto chantageado. Quem sabe longe um do outro, podemos nos relacionar melhor.

Longo silêncio.

- Não há dia melhor pra alguém ouvir essas coisas... Quarta-feira de cinzas... Começa a via-crúcis...

- A senhora interprete como quiser... Se precisar de mim, estou disponível. É só ligar.

À noite, mergulhado no caldo inodoro e insípido da vida, ligou para o irmão. Fazia tempo que não se viam ou falavam. O outro era casado, tinha dois filhos e morava a quase mil quilômetros distantes. Sempre dizia que a profissão o impedia que visitasse os pais e o irmão e, quando tinha férias, sempre curtas, era preciso aproveitar, indo a praias do Estado em que morava, estâncias, hotéis-fazenda próximos da região em que vivia. Era alto executivo de uma empresa de logística e a qualquer momento corria o risco de ser convocado a interromper o descanso, por isso não podia ir muito longe.

A conversa foi curta, fria e sem novidades. Tentou esticar o máximo que pôde, mas o irmão insistia em ser lacônico. Por fim, veio a frase mais longa:

- Mas o que foi que aconteceu que você também decidiu ligar hoje? Isso nunca aconteceu! A mãe acabou de ligar. Será que ocorreu um milagre nessa casa? Ou estão precisando de algo?

- Não, apenas liguei para dizer que me lembrei de você, me deu saudades e quis saber como você está.

- Estou bem.

- Ok. Então felicidades e muito sucesso.

- Obrigado.

- Até outra hora.

- Até.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

37. Ah, por que não é assim?


O amor de Julieta e Romeu
O amor de Julieta e Romeu
Igualzinho ao meu e o seu
Igualzinho ao meu e o seu

A manhã de terça-feira de Carnaval já clareava. Poucas pessoas no clube. A música parecia resistir à investida do tempo. O que fora sucesso há mais de uma década voltava aos ouvidos como se fosse capaz de contagiar os foliões com uma alegria genuína. Para Otávio os dias de folia não passaram de expectativa e mesmice. Nenhum olhar, nenhuma paquera, nenhuma novidade.


Maria Luísa cedera aos desejos da carne no sábado. Saíram do clube direto para o motel. Ligara no domingo ansiosa, como se esperasse que o amigo dissesse que tudo ia dar certo, mas o desfecho não dava mostras de que seria exatamente o que ela desejava que acontecesse, mas sim o que de certa forma ela já previa. No domingo à noite, o rapaz parecia estranho, na segunda inventou uma desculpa para não ir ao clube.

- É, amigo, tenho medo de que eu seja a responsável por esses relacionamentos que nunca dão certo. Acho que, na verdade, sou eu que escolho sempre estar sozinha, sentenciou ela no telefone na segunda à tarde, quando soube que ele não queria ir à festa.

- Como assim?

- Tenho a impressão de que quando me relaciono com alguém já sei que não vai dar certo e procuro sempre um cara que vai me abandonar.

- Mas alguma coisa não deu certo?

- Não é nada disso. Para mim foi maravilhoso. Não sei como foi para ele, mas tenho certeza que,

se não foi perfeito, também não foi tão ruim assim.

- Não sei o que dizer.

- Tenho pensado em uma coisa. Não sei se estou certa. Hoje, estar com alguém é fragilizar-se. A gente morre de vontade de ter uma companhia, mas morre de medo. Não quer fazer concessão a nada. A partir do momento que a gente começa a se apaixonar por alguém, a gente começa a perder coisas. Não somos mais sozinhos, perdemos nosso controle. É muito difícil hoje pensar em nós mesmos como dependentes dos outros, ou como alguém que, além dos nossos sentimentos, deve cuidar dos sentimentos dos outros. Assim, inconscientemente antes mesmo que eu desista de quem estou a fim, já encontro alguém que faça isso por mim. Tudo se torna mais fácil. Não preciso tomar a decisão.

- Aí entra aquela questão que você disse: É como se tudo tivesse que estar à nossa disposição como produtos em supermercado.

- Exatamente isso.

Toda essa conversa voltava à mente de Otávio naquela madrugada. Seria esse também o seu caso?

Adriana também já se apartara do grupo em busca de emoções que satisfizessem sua vida. Na segunda noite tinha ficado com um rapaz e já fazia parte de outra turma. Ele sozinho, zonzo de cerveja, ficava por ali na falta do que fazer e pensava agora na semana seguinte, quando voltaria ao trabalho e tudo se passaria como no ano anterior. Por que ele insistia em manter-se naquele lugar, naquela cidade?

Teria ainda que resolver o problema com sua mãe. Ele estava adiando, mas chegaria o momento em que não poderia fugir mais. Melhor não pensar em problemas naquele instante.

E Frederico? Será que se veriam novamente? Jardel? Quando se encontrariam novamente? Continuaria jogando carta com o major? O projeto com o Breno? O que aconteceria? Seria tão bom se todas as ansiedades pudessem se resolver como se resolvem situações diante de uma gôndola de supermercado.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

36. Caso fortuito?


- Entre, eu vou pegar a chave.

Mas antes de se mover, ele então pousou os olhos nos braços e no tórax do rapaz que, vestido como estava com camiseta sem mangas, uma flanela pousada nos ombros, sentiu-se massageado por aquele exame e uma ereção involuntária marcou a sua calça. O camarada baixou os olhos, Otávio fechou a porta e aquela situação o deixou ainda mais estimulado e lembrando-se de Frederico, pressionou o moço contra a parede, apalpando-lhe a verga. O jovem desviou-se e foi se colocar no outro lado.

- Se você não quiser, posso parar. Não vou fazer nada que você não queira.

O outro permaneceu calado e Otávio pode ver uma mancha marcando-lhe a calça.

- Fique tranqüilo. Eu vou pegar a chave. Se quiser, pode usar o banheiro.

O rapaz foi ao banheiro e retornou com a flanela presa ao cós da calça. Otávio ainda mais excitado, deixou que o garoto fosse embora e dirigiu-se ao banheiro. Só lhe restava o prazer solitário.

Voltou à cama, deitou-se novamente e caiu no sono. Acordou, tomou banho, foi almoçar, voltou, encontrou com o Breno, combinaram os próximos passos para a execução do projeto de esportes – o que só aconteceria na semana seguinte quando voltasse a trabalhar – e ficou esperando que o rapaz viesse entregar-lhe a chave. Não iria descer. Ele que deixasse no balcão ou viesse ao seu quarto.

Estava novamente divagando, pensando em uma roupa para a noite, quando bateram à porta.


Abriu. Era o garoto.

Ele entrou com os olhos baixos, entregou as chaves, perguntou se poderia receber pelo serviço.

- Quanto é?

- Vinte reais.

Pagou e o rapaz não se moveu. Ficaram em silêncio.

- Você não quer se sentar?

- Não, obrigado.

Nova pausa.

- Você me desculpe por hoje de manhã. Retornou Otávio.

O rapaz nada disse, nem se mexia. Reparou então que um movimento de algo inflando-lhe a calça e não pode conter-se também. Tomou-o pela mão. Sentou-o na cama. O rapaz estendeu-se no colchão, deixando a saliência ainda mais à mostra. Otávio deitou-se ao seu lado e continuaram em silêncio. Apenas as respirações de ambos eram ouvidas. Na cabeça de Otávio passou-lhe pela cabeça a conversa que tivera na véspera com Maria Luísa. Ela podia ter razão, mas ele não precisava esperar.

Ajoelhou-se na cama e foi despindo lentamente o garoto e foi então que viu naquelas formas masculinas no auge da adolescência, a mais perfeita beleza encarnada em um homem nu. Cada músculo se desenhando como se sua tensão quisesse romper a pele, os pêlos sombreando partes do corpo. O rapaz permanecia imobilizado. Quando lhe ameaçou tocar o ventre, o menino arrebentou-se num líquido viscoso, polvilhando a pele de pontos brancos. Que cena maravilhosa, ele vira. Livrou-se também de sua roupa e ao lado do garoto, aliviou-se novamente de sua insuportável situação.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

35. Indiviso


Sexta-feira à tarde. Haveria baile de carnaval à noite. Estendido sobre a cama, olhando para o teto, a cabeça longe desenhava uma companhia masculina. Cairiam na folia, sambariam, se abraçariam, se beijariam, se amassariam no meio do salão. Depois, passadas as noite de samba, suor e cerveja, não se perderiam, não se esqueceriam, não desapareceriam da vida um do outro. O companheiro não sairia do seu lado, seguraria seu pierrot molhado e perderiam a cabeça juntos em muitas outras ocasiões.

O telefone tocando o fez rolar das nuvens macias da felicidade para a solidão da vida. Era Maria Luísa.

- Otávio, quer ir pro carnaval com a gente? Compramos uma mesa para as quatro noites e precisamos de mais uma pessoa pra rachar. Topa?

- Quem vai?

Ela explicou que iria com o rapaz com quem estava saindo, o Leandro, e a Adriana, de quem ele conhecia o nome no episódio com os pais de Jardel.

- Acho que não. Vou ser obrigado a ficar fazendo companhia pra moça e eu não estou a fim. Ela pode se encanar e pensar que tem alguma chance comigo...

- Desencana. A mesa é pra garantir as entradas. Vamos, quero que você conheça o Leandro.

À noite, conheceu o rapaz, achou-o interessantíssimo e quando houve um momento em que Leandro se ausentou para ir ao banheiro e Adriana estava se divertindo com amigos, ele confidenciou à amiga que o homem era um pedaço de mau caminho.

- Imagina você apalpando cada centímetro daquele corpo...

- Pois é, amigo, nesses poucos dias, tenho resistido bravamente.

- Resistir, por quê?

- A experiência tem me mostrado que os homens só querem transar, depois esquecem que a gente existe.

- Mas, vai que com esse não é assim.

- Não sei, mas por via das dúvidas, enquanto puder, vou evitar. É uma forma de fazer durar mais.

- Mais cedo ou mais tarde vai acontecer e, se ele tiver que ir embora, ninguém vai segurar e pode ser pior, porque quanto mais durar, mais há o perigo de você se apaixonar. Se for pra ser assim, é melhor que as coisas se resolvam de imediato e a fila ande.

- Ah, amigo, dessa vez estou apostando que é possível esperar um pouco. Acho que é possível nos interessar um pelo outro antes do sexo. Estou cansada de me sentir como alguém num supermercado. Tudo, desde a embalagem, tem que suprir um êxtase. Rapidamente se compra, se usa e se não satisfizer aquela expectativa, troca-se por outro. Tudo para assegurar nossa comodidade, a satisfação imediata dos nossos desejos. Assim, é melhor, não é? Vamos ficando sozinhos, não precisamos dividir nada com ninguém e vamos garantindo o controle. Não corremos o risco de nos fragilizar, afinal não podemos nos decepcionar e as emoções vão sendo preenchidas diante de prateleiras.

A conversa foi interrompida pela chegada de Leandro. Otávio notou nos olhos cismarentos da moça certa angústia. Para deixar o casal à vontade, ele procurou o ar livre, depois voltou ao salão, foi ao bar, ao alpendre, ao banheiro, caminhou pelos camarotes e assim, como se ele fosse um animal fora de seu habitat, a noite o viu vaguear pelo clube. Nenhum olhar, nenhum sorriso que significasse algo. Por mais que compulsivamente tomasse cerveja, não se animava para cair no samba.

Por volta das quatro e meia da manhã, deixou o clube e voltou ao hotel. Caiu na cama. O mundo girava. Teve a impressão que passou por um rápido cochilo. Sonhou que ele e Maria Luísa faziam compras num hipermercado. As pessoas vagueavam com carrinhos abarrotados, enquanto eles não sabiam o que escolher. Ouviu batidas na porta, abriu os olhos e viu que o dia já ia alto. A bexiga cheia doía, o pau duro. Estava somente de cueca. Enrolou-se na toalha de banho e foi abrir a porta.

- Desculpa acordar o senhor, mas vim saber se quer lavar o carro.

Era o rapaz da garagem, que depois de encará-lo, abaixou os olhos, esbarrando-os com o corpo saliente sob a toalha.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

34. O que vai e o que torna

Uma após outra, as horas se foram como contas de rosário por entre os dedos.

Na quinta-feira à tarde, o sargento ligou convidando Otávio para o jogo de cartas à noite.

- O que aconteceu, rapaz, que você desapareceu? Só por que Jardel foi viajar? A gente continua por aqui.

Então o sibarita já tinha partido para a farra!

- Sargento, não sei se...

- Você não está pensando em me dar o cano, está? Sem o meu parceiro, eu estou no mato sem cachorro.

- Está bem, eu apareço.

Pelo menos teria algo para preencher o tempo.

Na casa dos pais de Jardel, o Lalo e o Oliveira com as respectivas famílias. Ao mesmo tempo que
Otávio flagrava a mulher do Oliveira o observando, ouvia as piadas do Lalo.

- Sabe aquela das duas bichinhas que deliravam com coisas impossíveis que gostariam que acontecessem?

- Não.

- Então! Uma delas se vira e fala assim pra outra: “Já pensou se chovesse pica?” A outra respondeu: “Nossa, eu não ia tirar meu cu da bica.”

Riam a gosto.

Vinho era servido sem reservas. O jogo avançava. O telefone tocou e Dona Elizabeth foi atender. Era Jardel. Otávio, de ouvidos atentos, tentava mapear a conversa. Ouviu quando a mãe respondeu ao filho:

- Está sim! Seu pai agora não joga mais carta sem ele como parceiro. Quer falar com ele?

Jardel tinha perguntado por ele? Por quê? Uma pequena esperança foi batendo as asas em sua imaginação e voando por todo seu corpo. Ele também já estava com saudade.

Dona Elizabeth desligou o telefone e veio dizer que o filho estava em São Paulo e que viajaria à noite para Minas.

- Jardel ligou ontem e eu falei pra ele ir atrás de uma especialização em endodontia que vai começar logo depois do Carnaval. Disse o Sargento.

- E ele vai fazer? Tornou Otávio curioso.

- Ele não quer, mas eu e a mãe dele estamos insistindo. De que adianta terminar a faculdade e ficar parado. Ele nem começou a trabalhar. Para ele não vai fazer diferença ficar mais um tempo longe de casa.

A esperança foi à beira da sepultura. No lugar dela, tristeza e abandono potencializados.

Bateram palmas no portão. Dona Elizabeth foi atender. Era Dona Margarida, a ex-professora, vizinha da frente. Veio combinar a passagem da imagem de Nossa Senhora das Dores pela casas da rua. Cumprimentou os jogadores e quando viu Otávio falou:

- Esse rapaz é um talento literário. Guardo até hoje uma redação que ele escreveu quando estava no grupo. Enquanto todos escreviam sobre assuntos triviais, ele era capaz de escrever coisas que fugiam ao senso comum.

- Que elogio! Disse Dona Elizabeth.

- Qualquer hora vou procurar e vou trazer uma cópia para vocês lerem. É uma história sobre um garoto que beija um peixe.

Otávio não se lembrava mais daquilo e ficou cheio de interesse em ler o texto. As palavras da professora soaram como um conforto. Quem sabe não estaria na sua paixão pela literatura a saída para sua aflição? Sabia que estava sublimando, mas era o que lhe restava fazer enquanto não lhe acudia o príncipe encantado. Ele não admitia, mas acreditava em príncipes, histórias de fadas e felizes juntos para sempre. Tinha a ilusão de que um dia encontraria um homem que se encaixaria como uma luva em todos os seus desejos. Frederico, Jardel e alguns outros rapazes desfilavam por seu pensamento entre cartas, goles de vinho e as piadas de Lalo.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

33. A vida continua


O dia já estava amanhecendo quando passos furtivos no corredor indicaram a ida de Otávio para seus aposentos. A conversa de despedida fora breve. Frederico sairia bem cedo para a viagem.

- Será que nos encontraremos de novo? Perguntou Otávio.
- É claro. Depois do carnaval estou aí.

- Podemos nos falar, enquanto durar a ausência?

- Se quiser, pode me ligar.

O fazendeiro ditou o número, que Otávio gravou na memória como a mais valiosa das informações. Na cama ficou repetindo a seqüência de algarismos com receio de esquecê-lo. Quando acordou perto do meio dia, o outro já tinha partido. Desceu para almoçar e em todos os cantos do hotel por onde passou, havia um vazio. Ficou sentado na recepção do hotel por algum tempo como se a qualquer momento alguém fosse entrar pela porta e retirá-lo daquele estado de impotência. Por fim, Otávio voltou ao quarto e com os olhos fixos na copa da árvore que ficava defronte sua janela, fazia mil perguntas, tentando encontrar um sentido para o que acabara de lhe acontecer. Tentava avivar na memória cada minuto do que se passara com ele e deu-se conta então que o que mais lhe causava melancolia não era a falta que fazia ter descoberto no hálito, no cheiro da pele e dos cabelos de Frederico, os perfumes que nunca sentira, o som dos gemidos e dos suspiros que nunca ouvira, tê-lo gozado loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio, era estar marcado com o selo da solidão.

Desceu para acessar a internet, nenhum comentário no seu blog. Sua carência aumentou. Viu quando o Breno entrou no estabelecimento foi até ele e disse que havia terminado o projeto. O outro ficou feliz por isso. Precisava de agilidade. Afinal em ano político é preciso agir. O proprietário do hotel disse que iria ler e depois conversariam sobre a organização dos próximos passos.

Desceu novamente e ficou no hall de entrada com o jornal entre as mãos. Seu pensamento divagava. Procurava o outro pelo faro.

- O primeiro dia sempre é o mais difícil. Ouviu uma voz feminina gritando na rua.

De onde vinha aquela voz que parecia gritar para ele? Olhou pela vidraça e viu uma moça morena atravessando a rua. Foi até o bar onde estivera na véspera. Pediu cerveja. Veio a primeira, a segunda... No meio da garrafa, apareceu seu pai e sentou-se à mesa. O garçom trouxe mais um copo.

- Você não foi viajar?

- Não. Saí de casa.

Ele explicou o acontecido e seus motivos acumulados durante tantos anos. O pai concordou com tudo o que ele afirmava.

- Muito me admira ouvir isso. Não sei como o senhor é capaz de agüentar um casamento de tantos anos.

- Ela nem sempre foi assim. Mudou muito com o tempo. Mas acredite, ela me completa. Eu não conseguiria viver sem ela... Com todo aquele temperamento, ela faz por mim coisas que eu nunca encontrei quem fizesse e receio jamais encontrar... a grande maioria dos casamentos não é o que vocês, jovens, pensam que é...

Gritando para o garçom, o velho pediu a terceira cerveja e a conversa continuou. Ao final da quinta, o velho pagou a conta e disse:

- Se precisar de alguma coisa, é só me ligar.

- Ok, pai. Muito obrigado!

- Mas gostaria de pedir que você conversasse com sua mãe.

- Depois do carnaval.

Chegando novamente no hotel, lembrou-se que desde que transferira para aquele lugar, tinha deixado o carro na garagem e não mais fora ver. Desceu para verificar se tudo estava em ordem. Aproximou-se do veículo e quando deu por si, um rapaz o observava. Quando seus olhares se cruzaram o moço voltou ao trabalho. Otávio tornou a olhá-lo. Era jovem, vinte e poucos anos. Louro, cabelos compridos, estatura mediana. A roupa que usava moldava-lhe o viço dos músculos que há pouco atingiram o ápice da forma. Um belo exemplar, pensou. Olhava por interesse? Poderia não ser. Estava tão carente que qualquer homem que olhasse para ele figurava como uma promessa.

Deu a volta no carro e voltou-se para o rapaz, que o olhava novamente.

- Vai lavar o carro? Perguntou o jovem?

- Hoje não. Sábado é um bom dia. Respondeu Otávio.

- Ok. Quando precisar, é só falar com a portaria do hotel. E continuou o trabalho.Otávio ainda ficou por ali mais alguns instantes. Depois, quando acessava a porta que dava acesso ao piso térreo, retornou repentinamente para observar o moço a certa distância e o outro que tinha os olhos presos nele, abaixou a cabeça e continuou a lavar o carro.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

32. Bis


O telefone tocou novamente. Acordaram. O visor do aparelho indicava o número da casa dos pais. Foi então que ele se lembrou que havia prometido ligar para a mãe. Devia ser ela que estava à procura de notícias suas. Combinou então com Frederico que iria para seu quarto tomar banho e trocar de roupa para irem logo mais ao leilão e ligou para casa.

- Meu filho, estamos preocupados. Você falou para sua mãe que iria viajar e não deu mais notícias.
Explicou para o pai que tudo estava bem e que não se preocupassem. Estava curtindo as férias.
Onde iria chegar com aquela mentira? Não queria saber. O importante era viver o momento. Seus pais que o esperassem com suas preocupações. Ele não estava querendo prever nada.
No banho, deixou que a água escorresse por seu corpo como se o acariciasse, enquanto seu pensamento tentava imaginar o que seria a noite ao lado daquele ilustre desconhecido que lhe proporcionara uma experiência nunca antes imaginada.
No leilão, ficou aparvalhado em constatar que um negócio como aquele existia em sua cidade e ele não conhecia nada daquilo. O que se via era algo que não imaginara existir, quase um universo paralelo. Homens e mulheres com os últimos lançamentos em carros, roupas e acessórios. Comida e bebida eram servidas nas mesas, enquanto lotes e mais lotes de bezerros e novilhas desfilavam diante dos olhos de todos. Os lances se sucediam, música sertaneja nos intervalos e os olhos de Otávio pregados na platéia masculina que infestava o local como um enxame de moscas.
Frederico se comportava como se nada tivesse acontecido entre eles e isso aumentava o desejo de Otávio por aquele boiadeiro. Só de saber que em poucas horas teria novamente aquele homem no estado em que estiveram já o deixava ereto.
Apesar de Frederico não dar mostras do ocorrido, se comportava como se o olhar de Otávio lhe apalpasse o corpo. As vezes se levantava, ficava em pé diante dele, exibindo os quadris na altura da cara. Em outros momentos, entre um copo de cerveja e um pedaço de churrasco, esbarrava propositadamente no outro ou pegava-lhe a mão no mesmo momento em que o outro avançava para apanhar algo sobre a mesa.
Depois de realizado os negócios e contratado para o dia seguinte o transporte da manada, terminado o evento, foram novamente para o hotel. Agora já não eram necessárias as preliminares da tarde. Mal entraram no apartamento, Frederico despiu-se e, sem tocar o corpo do amante, colocou-se na posição de combate. Otávio não pôde resistir, atirou‑se contra ele.

Nunca tivera um parceiro assim tão violento no prazer. Ondulando sobre o colchão, seus corpos dialogavam como se fossem macias chamas que se tocavam. Frederico sentindo o tépido corpo vibrando dentro do seu, improvisava uma sucessão de movimentos inusitados que foram crescendo até que o outro estourasse em tremor e gozo.
Otávio havia descoberto o capitoso encanto que embebeda qualquer homem limitado em suas experiências com o sexo e pode então entender, porque em várias civilizações haviam deuses para o gozo venéreo. Seu pênis, agora selvagem e raro como um unicórnio, desejava mais aventura e Frederico adivinhou essas intenções.
Deitado como estava, torceu‑se trazendo os joelhos em direção ao peito, como se fosse um guerreiro que tivesse sucumbido ao golpe do inimigo, pronto para ser golpeado. Assim, desguarnecendo-se, exibiu o vasto campo a ser dominado. Otávio não se fez de rogado e dominou-o como quem utiliza uma arma de guerra.
Redemoinhos puros e profundos de sensações os arrastavam e de ambos os lados das trincheiras, vinham sons inconscientes e desarticulados. A visão estonteante que Otávio tinha ao avistar-se penetrando uma enseada profunda com montes salientes acima dela, o transportava para terras distantes, mas ao mesmo tempo o mantinha presente naquele embate. Transpondo os montes, via-se um corpo macio, coberto de uma vegetação rasteira de pêlos que se estendiam por um ventre branco, que se alongava em tórax e ombros e pescoço e boca a murmurar gemidos excitantes e olhos e rosto e sua âncora que afundava e ressurgia e braços e as mãos de Frederico a massagearem freneticamente seu istmo ereto, pronto a explodir. Também o boiadeiro, rangendo os dentes e grunhindo debaixo daquele seu inimigo, contemplava inusitada paisagem, achando‑o também agora, como homem, melhor que nunca, aumentando um som gutural e estrangulado.

Otávio se curvou e alcançou o rosto de Frederico, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço, arquejante e convulso, estocou-lho, explodindo em grosso e espesso líquido e viu então o outro irrompendo-se como se viesse a depositar sobre a cratera do umbigo aquele curso fluido que por ele circulava.

Frederico então recostou a cabeça sobre o peito do outro e, embalado pela respiração de Otávio, cerrou as pálpebras como quem se deixa ninar pela maré das águas, enquanto Otávio se deixava ali ficar, incapaz de se mover para que o outro não acordasse, com os olhos vagueando pelos cantos, fugindo para o teto, pousando nas cortinas, que se transformavam num campo e alcançavam as incomensuráveis distâncias da saudade. Ele então se esforçava para reter em sua memória aquela paisagem com seu brilho e vida para que não se tornasse nunca uma natureza morta.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

31. Rodeio


Entraram no quarto. Frederico rodou a chave na fechadura. Otávio encostou-se na parede para liberar a passagem. O notebook estava sobre a mesa no canto direito do aposento. O boiadeiro, em vez de caminhar para a máquina, parou e colou-se nele, enfrentando-o, colocando as duas mãos na parede, prendendo-o com o corpo. Otávio sentiu-lhe o calor e ouviu dois corações batendo compassadamente, acelerados. As respirações bafejando próximas e um odor que os excitava.

- Você é um marruá fornido, buliu com minha atenção – no estado em que estavam, a respiração de ambos se entrecortava –. Acho que vi nos seus olhos que você também se interessou por mim...

- Me desculpe se...

O outro não deu tempo para que continuasse a fala. Desceu-lhe a mão direita pelo corpo por sobre a calça até o zíper, pressionando-lhe com mãos hábeis de quem está habituado a apalpar os órgãos de reprodutores as saliências exaltadas.

- Só precisa se desculpar se não for a fim. Minha proposta é simples. É sim ou não?

- Sim.

- Falta uma única coisa.

- Qual?

- Tenho interesse apenas em ser passivo com você.

- Ok.

Mal teve tempo de balbuciar. O outro, enquanto lhe segurava a verga, enfiou-lhe a outra mão por baixo da camisa e apertava-lhe um dos mamilos, enquanto raspava os dentes no outro. Otávio deixou-se ficar abandonado nos movimentos daquele corpo que o dominava. Seus músculos latejavam, reclamando aquele homem de sangue esperto. Perceberam que, aos dois, era-lhes insuportável o estado de lubricidade.

Frederico já lhe tinha alcançado o rosto e a boca volúvel chupou-lhe os lábios e invadiu-os, puxando-lhe a língua demoradamente. Depois arrancou-lhe a camisa, livrou-se também da sua, arrancou-lhe os tênis, descalçou suas botinas e, juntando as duas camas estreitas, jogou-se de bruços sobre os colchões.

Otávio não lhe deu tempo, atirou‑se contra ele, pressionando os quadris sobre os glúteos do outro, que se arrebitou para melhor sentir-lhe a envergadura. Deitado sobre o dorso de Frederico e no estado de lubricidade em que estava, segurou-lhe então uma das orelhas com os dentes. Como aquele senhor reagisse num pequeno sobressalto, ergueu-se, montado-lhe a garupa. Ao ver o fazendeiro embaixo de si, ainda hesitou um instante, imóvel, a contemplá‑lo. Assanhou-lhe ainda mais o desejo da carne, o sangue latejava‑lhe, reclamando‑o.

Foi então que Frederico se virou, abriu o zíper e livrou-se das demais peças, colocando-se numa posição confortável para que o outro pudesse servir‑se dele. Otávio deparou-se então com uma nudez estofada e branca como se fossem duas dunas divididas por uma mata ciliar que escondia um córrego de águas escuras no centro do qual já não havia mais uma paisagem, mas uma fruta sombria, que evocava a louca e voluptuosa boca do boiadeiro.

Sorveu-a demoradamente e continuou a deslizar pela planície ao pé dela até chegar ao comprido cacho que ali se dependurava e enquanto alisava-o ou mordia-o de leve repetidas vezes, como se quisesse extrair-lhe sumo, sentia o cheiro excitante e o que ouvia era uma escala de suspiros.
E se continuasse contornando aquela geografia?

Atingiu então um galho ereto de bom tamanho, na ponta do qual se exibia intumescida pitanga, que ele curioso continuou chupando. Harmoniosa era a ária executada pelo tenor que, postado como touro que estava, vergou-se sobre os flancos para apanhar com os beiços e a língua bovina o gomo longo e macio que se esticava atrás de si. Estiveram assim a afagar-se mutuamente, como se a luz coada pelas cortinas lhes lambesse deliciosamente como se tivesse lábios mornos.

- Chega! Clemência! Me transpasse com essa tua guampa...

Em meio às roupas de Otávio, o telefone tocando... Ele tornando a fitar o desenho que se formava na orla estendida sobre um céu quase branco. Ali onde morriam as duas colinas, assinalando o meio da margem, a pérola que se adentrava no escuro recesso. Pérola, fruta ou gruta? Revestindo o cajado, ele se pôs a palmilhá-la.

Baixarias ou gozos sublimes?

Espojou-se nele, que, depois, satisfeito, envolveu-o nos braços e naquele aconchego, cansados do costeio, adormeceram.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

30. Frederico


- Você é de onde?

Enquanto explicava ao novato sua história, desceram as escadas, ganharam a avenida e chegaram ao bar. Um corte profundo cindia Otávio em duas partes complementares. Uma prestava atenção em cada palavra, em cada gesto dele e do outro, como se fosse um lance num jogo de xadrez. Outra avaliava o seu estado e combatia seu medo.

O que aquele sujeito teria visto nele para lhe propor tomarem cerveja na mesa de um bar? Seria o que lhe passava pela cabeça? E se fosse? Como reagir? Evitaria? Mergulharia na proposta?
Toda sua vida fora pautada pela ética do bom moço, pelo medo de se expor, de decepcionar os pais. No que resultara? Em traumas, tédio e solidão.

Acomodaram-se em uma mesa na calçada, o toldo azul projetando sombra sobre eles e, pelas paredes, cartazes propagandeando cerveja nas mãos de mulheres com biquínis reduzidos. O garçom encheu os copos.

- Um brinde às novidades. Propôs Frederico.

- Às novidades... Respondeu Otávio. E você? De onde vem? Quis saber.

Soube então que Frederico tinha duas fazendas no Mato Grosso do Sul. Era criador de gado e vinha freqüentemente ao leilão de bezerros e novilhas, que se realizava às terças-feiras na cidade. O melhor da região para o tipo de negócio que desenvolvia.

- Você não tem namorada? Perguntou o fazendeiro.

Ele hesitou um pouco. Tinha vontade de já declarar toda a situação.

- Não... E você?

- Sou casado. Tenho um filho com dezessete anos e uma menina com doze...

A conversa continuou. Nada que desatasse as intenções do olhar já na recepção do hotel. Apenas

um ping-pong de perguntas e respostas, olhares fixos, como se um sondasse a reação do outro em busca de um ato falho.

- E sua esposa, não reclama que você viaje para tão longe atrás de negócios?

- Minha esposa, coitada, ela é muito boazinha. Não se opõe a nada que faço, não se mete na minha vida... E você, não se casou ainda por quê? Não deve ter sido por falta de oportunidade.

- Não... Quero dizer, acho que não... Não encontrei a pessoa certa ainda.

- E o que precisa ter essa pessoa pra ser a pessoa certa?

A prosa desencadeava então para discussões teóricas.

Depois de mais de três horas, algumas cervejas e muita saliva, o celular de Frederico tocou. Ele atendeu. Pela conversa, Otávio pôde entender que era um funcionário pedindo instruções. Ao terminar a ligação, o boiadeiro olhou as horas no visor do telefone.

- Você é um bom papo. A hora passou e nem percebi... Já tem compromisso pra hoje à noite? Não quer ir comigo no leilão?

- Claro. Isso sim vai ser novidade. Apesar de morar aqui, nunca fui lá.

- Então vamos pedir a conta! Ainda preciso dar uma relaxada.

Veio a conta. Mesmo com a insistência de Otávio para dividirem o valor, Frederico pagou sozinho.

- Faço questão de pagar! Afinal, não é todo dia que a gente encontra companhia agradável...

Caminharam lado a lado no curto caminho até o hotel. O torpor do álcool provocando aqueles esbarros acidentais e desejados entre braços e ombros. Conversas sobre o tempo para prolongar a comunicação e evitar o silêncio que seria um peso naquele momento.

No hotel, Frederico abriu a porta do seu apartamento e Otávio fez menção de continuar pelo corredor, adiantando um passo.

- Quando for hora, interfone no meu quarto: 104.

- Não quer entrar pra dar uma olhada nas minhas propriedades? Frederico suspirou e sorriu. Tenho fotos e vídeos no computador...

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

29. O que será? O que será?


Otávio passou o resto da tarde, o início da noite e a manhã do dia seguinte redigindo o projeto. Saiu para o almoço e quando voltou já não tinha mais disposição para tal trabalho. O que fazer então? Ele relutava, mas percebia que todo seu tempo livre eram lacunas em potencial para lembrar de Jardel.

Contudo era preciso levar a vida adiante e ele se sentia deslocado sem aquilo que lhe dava segurança, a sua antiga vida estruturada ao lado do papai e da mamãe e da idéia de que um dia encontraria um companheiro com quem viveria uma relação eterna e duradoura.

Apesar de estar farto de emoções violentas – muitos foram os fatos da última semana – pedia ao minuto que passava, ao telefone que não tocava, que lhe trouxesse uma emoção que lhe preenchesse os próximos instantes e prolongasse por toda a tarde, toda a noite e toda a sua existência.

Pôs-se a pensar em como preencher o tempo e a internet lhe veio como solução. Postou mais um comentário em seu blog e atualizava-se: as últimas notícias do Alberto, no zapping news; as reflexões do Klero, no Gclichê; os perfis que compunham a galeria do Leo Carioca; o fim de semana do Mário, no limite da razão; as crônicas do Mans; riu com o “ask to gay guru” e o Goiano; as novidades do sítio peludo e do Pingüim.

Postava um comentário quando um novo hospede chegou para ser atendido. Pelo traje – calça jeans, cinto com fivelão, botinas, camisa pólo por dentro da calça, evidenciando a barriga um pouco saliente – ou pelo bigodão e pelo boné com o símbolo dos criadores de nelores, aparentava ser quarentão.

Antes de dizer qualquer coisa à atendente, seus olhos se cruzaram e seu radar já detectou aquela manchinha que somente um gay sabe reconhecer na fisionomia de outro. Pela rapidez com que foi atendido, adivinhou que era um cliente habitual daquele hotel. Quem seria? O que teria vindo fazer naquela cidade? Olhou novamente e o outro estava a olhá-lo. Ouviu quando o outro falou que iria tomar um banho e descansar da viagem. Estava na estrada desde a madrugada.

Otávio quis continuar a blogar, ainda faltavam o Tin Man, O Teorema de Oz, As Memórias Profanas, o Too-tsie, o Kazé, o Controversy, enfim muita gente, mas dentro dele reinava o desassossego. Resolveu ir para o quarto, fazer outra coisa. Quem sabe ler um dos livros que trouxera.

Ao se aproximar da escada, ouviu passos no piso superior e no hall, a meio caminho entre o primeiro conjunto de degraus para quem sobe e o primeiro para quem desce, deu de cara com o novo hóspede.

- Boa tarde!

- Boa tarde. Sabe me dizer onde se pode tomar uma boa cerveja por aqui?

- Claro, na primeira rua transversal à avenida, logo aqui embaixo à esquerda, é um bom lugar.

- Não está a fim de me acompanhar?

Mais um turbilhão em seu centro, mas o que teria ele a perder?

- É pra já!

segunda-feira, 28 de julho de 2008

28. Um passo, um trilho


Não queria pensar no relacionamento que mal se esboçara e já tinha dado provas de que se esfumaçara pelo ar, na mãe que preferia vê-lo morto a não o ter dentro do exato desenho de sua loucura, no que iria fazer sem a infra-estrutura que seus pais lhe ofereciam e que o fazia permanecer instalado e acomodado com uma logística falsa. Recusando-se a reter na mente qualquer fiapo de idéia que lhe viesse a tirar do seu estado de indolência, adormeceu.

Acordou no meio da tarde com o celular tocando. Maria Luisa o convidava para um sorvete. Ela precisava lhe contar as novidades. Logo que o viu, a moça percebeu que ele não radiava o brilho dos últimos dias. Otávio resumiu os acontecimentos e finalizou resignado:

- Melhor assim! Agora sou realmente um pós-moderno, um cara obrigado a me inventar a cada momento. Toda vez que piscar os olhos, vou lembrar que tudo o que eu me agarrava: família, um lar, um companheiro não existe mais e vou ter que buscar algo novo...

- Ainda bem que você ainda tem um emprego! Mas, sinceramente, espero que você encontre algo que te conforte...

- Vamos ver. A sorte está lançada! E você? Estou curioso pra saber as novidades...

- Bem, amigo, ao contrário de você, estou nas nuvens!

Ela então começou a lhe contar sobre o final de semana. Fora na casa da tia na sexta e encontrara lá um amigo do primo. Conversas, olhares, risos e um convite para sair. À noite, o beijo.

- Sabe aqueles caras que têm uma pegada que te faz arrepiar a nuca?

- Puxa, gostei! Se joga!

Ela estava tão entusiasmada que ele se entreteceu com a animação da amiga, mas quando chegou ao hotel, já tinha voltado ao velho hábito de planejar o momento seguinte. O que faria?

No hall, encontrou o Breno, o dono do estabelecimento, um pedaço de mal caminho, que ostentava uma grossa aliança no dedo anular da mão esquerda. Procurou passar despercebido, não queria justificar o motivo por que, morando na cidade, estava hospedado em um hotel.

- Otávio, soube que você está hospedado aqui...

- É, tive uns contratempos em casa. Preciso cuidar da minha vida, morar sozinho...


- Escuta, tenho uma proposta pra te fazer. Estou pensando num projeto e você é a pessoa ideal pra elaborar pra mim.

Como ex-atleta do vôlei da cidade, queria montar uma parceria com o poder público. Pensava grande, inclusive em ter na cidade uma equipe que viesse disputar a liga nacional.

- Podemos fazer uma permuta com sua estadia aqui. O que você acha?

- Acho ótimo. Falou com a pessoa certa.

terça-feira, 22 de julho de 2008

27. O salto



Meio sonolento, sem coragem para abrir os olhos, pôs-se a escutar um ruído. Estaria sonhando novamente? Não, a manhã já ia alta, ele estava acordado. Alguém cochichava: “Ó mãe de Deus e minha mãe, livrai-o do fogo do inferno. Se preciso for, leve a alma do meu filho para o céu, mas não o deixe cair em tentação.” Abriu os olhos e flagrou a mãe aos pés da sua cama, de mãos postas, com um rosário entre os dedos. Ela se surpreendeu com o acordar do filho e saiu do quarto.

Uma preguiça enorme tomava conta de seu corpo. Doía-lhe ter que abrir os olhos e pensar. Se pudesse, queria ser desprovido de algumas faculdades humanas naquele momento. Virou-se para o lado e permaneceu imóvel. Ouviu os passos da mãe que retornou ao quarto e repetiu ave-marias a não mais acabar. Ele fazia um esforço meditativo para que nenhuma representação mental se formasse em sua mente.

Quando a mãe se retirou, cansado de estar na cama, ele decidiu:

- Não posso mais estar assim. Preciso sair dessa zona de conforto que não me é nada confortável.

Levantou-se, mas não saiu do quarto. Abriu o armário, olhou as roupas nos cabides, escolheu um traje. De quantas malas precisaria para retirá-las dali? Além das roupas o que mais levaria? Meia dúzia de livros e alguns objetos pessoais. Apenas isso.
Foi à cozinha, tomou café preto. Nenhuma palavra com a mãe que ia e vinha naquele espaço como quem tinha a segurança de existir pairando sobre qualquer mudança.
Ganhou a rua e foi direto ao hotel. A atendente era a Margarida, velha conhecida sua. Estudara com ela no grupo e desde a adolescência trabalhava naquele estabelecimento. Acertou permanência por uma semana, uma vaga na garagem. Durante esse tempo resolveria o que fazer.

Voltou para a casa dos pais, fechou-se no quarto, dispôs as roupas em duas malas, os objetos pessoais em uma sacola de mão. Dos livros, escolheu três e deixou os outros na estante.
Ao sair, a mãe perguntou:

- Onde você vai?

- Viajar.

- Pra onde?

- Não sei, no caminho decido...

- Mas agora, assim, desse modo, sem nenhum planejamento...

- Uma viagem dispensa esses protocolos!

- Ah, meu Santo Antônio, valei-me. Livrai-me das minhas aflições!

- Dispense também o santo dessa obrigação... Eu ligo quando chegar, se é que isso vai te deixar mais calma.

- Quanto tempo vai demorar?

- Também não sei...

No hotel, estacionou o carro na garagem, acomodou as malas no quarto, fechou a porta, deitou-se e pôs-se a fazer o exercício de não pensar em nada...

segunda-feira, 14 de julho de 2008

26. O céu da Pátria nesse instante!


Os olhos de Otávio enxergavam através da tela do computador algo que já era passado. Rememorava. Mais uma promessa que se extinguira. Curta possibilidade que se desenhou no céu da pátria, por um instante. Diante da tela do computador, pouca atenção prestava nos blogs que acessava.

O domingo de sol tinha terminado de modo inesperado. Ele até se atreveu a ir ao rio pescar, mas, como Jardel acordara passando mal, vieram embora mais cedo. Largaram o Lalo, o Ezequiel e as respectivas famílias na chácara e puseram-se na estrada. O silêncio que os oprimia dominando cada quilômetro percorrido. Depois daquela situação o que restaria?

Ouvia ainda as risadas de Lalo e Ezequiel sobre as piadas que contavam entre uma e outra lata de cerveja. Ficavam martelando em sua cabeça. Será que tinham curiosidade de viver uma relação homossexual? Uma das anedotas lhe parecia sintomática:

- Então, a mulher mandou avisar o compadre que o marido sairia de vigem. Na hora marcada, o compadre chegou na casa da comadre, escutou a água caindo do chuveiro e pensou: “É ela que está se aprontando!”. Tirou a roupa, deitou por cima dos lençóis e ficou ali sentindo nas partes baixas a aragem que entrava pela janela. De repente a porta do banheiro se abre e quem entra no quarto? O marido da comadre! “Mas compadre o que significa isso?” “ Sabe, compadre, estava em casa, numa angústia danada e não sabia o que se passava. Foi aí que, num relance, eu finalmente compreendi. Tenho que te contar, não posso mais esconder isso de você.” “Mas o que foi, compadre? Isso é motivo pra você ficar pelado em cima da minha cama?” “Compadre, não zombe de mim, mas morro de vontade de dar pra você!”

O que era uma relação senão uma luta? Começava pela atração e caminhava para onde? Para a debilidade, a desconfiança, o medo de perder, de ser trocado por outro, de ouvir um “não”, ou para a resignação dos desejos... Não queria entrega integral, mas certa consideração. O que custaria a Jardel uma renúncia? Nem precisaria uma renúncia, poderia ser apenas uma reformulação de planos, até que pudessem viajar juntos...

Seria possível nova conversa entre os dois? Um pedido de desculpas? Quem deveria fazer esse pedido? Ele deveria pedir desculpas? Por que, se lhe parecia que o que o outro esperava de um relacionamento era estar com ele e ao mesmo tempo ser livre para estar com quem quisesse? Uma conversa honesta e franca resolveria? E o que cada um faria com seus sentimentos, quem abriria mão do bem próprio?

Ás vezes achava que isso é que dificultava dois homens às propensões do amor. Homens não foram educados para cederem, para o gesto carinhoso, terno, meigo. Quem iria se desviar das normas preestabelecidas, dos seus domínios? Era muito individualismo para que isso fosse uma solução!

E o sonho de se ter um companheiro? A vida não poderia ter mais encontros do que desencontros? Não haveria alguém no mundo que satisfizesse uma razoável percentagem das suas aspirações? Que fosse capaz de abdicar das seduções do mundo para amá-lo do jeito que era?

No meio da noite acordou de um sonho esquisito. Ele e Jardel pilotavam dois jatos. Voavam paralelamente a uma grande velocidade. A princípio, olhavam-se e sorriam. Aos poucos o gelo foi se acumulando sobre as aeronaves e os pilotos já não podiam se ver. Seguiam apenas as coordenadas dos radares.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

25. Tempo brusco


- Ok. Entendo o seu lado... Você fantasia um mundo de acontecimentos, de acordo com o que bem entende sua cabeça, sem saber quem são meus amigos, de acordo com o que você faria no meu lugar... Então por que você faria isso, você transfere pra mim tudo isso pra me chantagear e eu ficar sujeito ao controle dos seus caprichos, às suas excentricidades... Jardel argumentava.

- Não precisamos discutir mais... Já disse que você pode ir... Otávio encerrou a discussão.

Jardel pôs-se a temperar a carne e Otávio pegou uma cerveja e sentou-se na varanda, observando a chuva que caía.

Dentro de cada um havia um vulcão, uma vontade enorme de voltar à discussão, mas lutavam para se conter. Cada um monologava à sua maneira, perdidos em um ressentimento amargo.

Otávio imaginava o outro viajando com os amigos de faculdade. Quem seriam? Era preciso dizer algo? Alguém que fosse gay iria para o carnaval com héteros? Ele já podia imaginar qual a finalidade da viagem. Lembrava outros relacionamentos. Tudo era uma maravilha quando estavam sozinhos, mas quando os amigos e conhecidos eram acrescidos na relação, o caldo entornava.

Por outro lado, Jardel gostaria de entender se, para namorar alguém, teria que abdicar do que já vivera, daquilo que em outros relacionamentos se tornara um tormento. Ter somente amigos em comum. Será que não seria possível uma vida independente? No fim, era tudo a mesma coisa: um querendo controlar o outro, um querendo subjugar o outro. Relacionamentos gays e héteros eram todos iguais. Dois fechados num mundinho, respeitando mutuamente medos e fobias.

Estavam ruminando os pensamentos, quando o caseiro, o Lourival, apareceu no meio da chuva, embrulhado numa capa amarela. Encontrou Otávio sentado na varanda:

- Com esse tempo nem dá pra pensar em pescar, não é mesmo?

- É.

- E se vocês estão pensando em ir embora, é bom esperar um pouco. Do jeito que tem chovido, o carreador fica tão encharcado, que o carro patina e não sobe...

- Tudo bem...

- Sair pra pescar e ter que ficar dentro de casa não é bom, né? O homem tentava puxar conversa, mas Otávio permaneceu calado e com a cara que estava, o outro desistiu.

- Bem, se precisar de alguma coisa, é só chamar...

- Tudo bem.

Otávio foi para dentro.

- Precisa de ajuda?

- Não, pode deixar que eu termino.

Em momentos distintos, os dois tentaram puxar conversa, mas algo havia se rompido e por mais que tentassem resolver a situação o que haviam ouvido um do outro ainda os humilhava.

A tarde avançou e com ela veio o almoço. A comida deliciosa enroscando na garganta. A presença do companheiro, que já fora uma promessa, era agora uma ameaça. Por que estarem juntos, se um voto, um juramento, poderia se tornar um pesadelo?

Passaram a beber e o som da chuva no telhado era quebrado por algumas frases que se calavam rapidamente. Assim chegou também a noite e os dois foram dormir como dois desconhecidos. Algo havia realmente se rompido.

Otávio despertou no meio da noite e a insônia o pegou. Levantou-se e foi para o sofá assistir televisão. Acordou com pessoas entrando pela casa, fazendo alarde. Era o Lalo e o Ezequiel, com as famílias.

Meio desorientado, ouviu:

- Rapaz, acorda, que a chuva passou. Vamos aproveitar a água barrenta, que esse córrego aí no fundo está cheio de bagres! Vai ser boa a pescaria.

domingo, 29 de junho de 2008

24. E você, de que lado está?



- Você está chateado. Jardel quebrou o silêncio.

- Achei que podíamos passar o carnaval juntos.

- Mas essa viagem já está marcada desde o final do ano. É uma comemoração de amigos que estudaram juntos, viveram uma etapa da vida juntos, se formaram juntos...

- Sei.

- Não entendi... Isso foi uma ironia?

- Eu é que sou tolo e espero demais das pessoas!

- Juro! Tentei fazer da melhor maneira possível. Desde que nos conhecemos, estou pra te falar isso e não disse nada com medo da sua reação. Eu poderia te convidar pra ir comigo, mas...

- Eu não iria.

- Eu só queria que você entendesse que não há motivo pra ficar chateado, afinal quando eu combinei essa viagem, eu estava em outro contexto, eu sequer imaginava que ia te conhecer, queria apenas comemorar com meus amigos...

- Pára de falar desses seus amigos... Ok, eu já entendi, não precisa ficar se explicando!

- Você está com ciúmes!

- Como é que você se sentiria, se eu te trocasse pelos meus amigos...

- Acontece que eu não posso negar o passado. Ajudei a planejar, a escolher o lugar, investi dinheiro e expectativas nessa viagem...

- Está certo! Como você já deixou bem claro, se você relutou em me dizer que ia viajar no carnaval, porque tinha medo da minha reação, está na cara que, no meu lugar também ficaria chateado.

- Estou me sentindo um injustiçado!

- Não, não se sinta assim. Não há problema, não. Pode ir pra folia com seus amigos, não quero ser um empecilho.

- Escuta, Otávio, não tenho bola de cristal, não faz nem uma semana que a gente se conhece...

- Não precisa se exaltar! Eu já disse que você pode ir. Você já deixou as coisas bem claras... Eu sou mais um na sua lista, não é? O que você acaba de dizer faz todo sentido... Não faz nem uma semana que a gente se conhece e já estamos juntos, numa final de semana, numa chácara, tudo armado por você... Foi assim também quando você estava para se formar? Foi sua a iniciativa de viajar com seus amiguinhos? Como você iria passar uns dias no interior, depois de viver uma vida agitada em uma cidade maior? Aqui não rola nada, não é verdade? Você teria que ir à desforra no carnaval, não é mesmo? Agora como é que você vai abdicar do que tanto deseja na companhia dos seus coleguinhas?

- Você está sendo perverso. Está querendo me fazer sentir culpado?

- Não. Só estou querendo que você entenda o meu lado!

segunda-feira, 23 de junho de 2008

23. Roda viva


O corpo, a materialidade do corpo. A possibilidade de tocar, abraçar, encontrar-se no corpo alheio, dominá-lo ou deixar-se dominar, possuí-lo ou ser possuído. Além disso, a persuasão íntima de que assim o é, porque nós e o outro assim o desejamos e fruidores dessa situação, deixamo-nos permanecer em estabilidade de sermos amados, ou de termos certo poder de encantar e exercermos fascínio sobre alguém.

E catalisando todo esse estado, o corpo – materialização das almas. Expressando sutilizas e peculiaridades de cada ente, conduz a história, que no afã de ser tecida, cruza seus fios com outras expressões de vida.

Abraçados, mãos passeando sobre o cálido amigo, entre vales, planícies e saliências, não lhes era acessível outra coisa a não ser o prazer sinestésico do contato com o mármore animado. Sons que evocando cores, perfumes, sabores e calor epidérmico, reclamavam que o momento fosse eterno.

Lá fora o vento farfalhava. Os ramos das árvores agitavam-se. O mundo girava e um relâmpago cruzou o céu. A chuva principiou fina sobre o telhado e não cessou até o outro dia.

Acordaram satisfeitos. Era quase meio dia. Depois do desjejum, o que poderiam fazer juntos em um dia como aquele? Poderiam assistir a um filme, mas não haviam trazido nenhum. A música de Jardel silenciara. Jogar cartas? Não. Assistir televisão em final de manhã de sábado? Era o que lhes restava fazer dentro daquela casa!

- Vamos tomar alguma coisa? Perguntou Otávio.

- Oba, vamos começar cedo, mas enquanto isso, vou começar a preparar uma carne pro nosso almoço. Disse Jardel.

- Estive aqui pensando... O que a gente podia fazer no final da semana que vem, já que é final de semana prolongado? Não rola nada no carnaval dessa região.

Houve alguns minutos de silêncio.

- Pois é... Eu estava pra te dizer uma coisa, mas não sabia como falar. Desde a minha formatura, eu combinei com alguns amigos da turma de passar o carnaval em Ouro Preto...

- E você vai?

- Já estou com tudo pago...

- Ok.

Foi impossível para Jardel não perceber o desapontamento estampado no rosto de Otávio. Um
mal-estar tomou vulto no ambiente. Lá fora, a chuva caía torrencialmente.

terça-feira, 17 de junho de 2008

22. Tudo vai bem


Céu azul, calor, o som do carro tocando:

Menino bonito
Menino bonito, ai!
Ai menino bonito
Menino bonito, ai!...

O final de semana prolongado se tornando uma realidade. Era como se planassem levados por uma corrente de ar quente que os fizesse dispensar motores. Para Otávio, o álcool ingerido no jogo de cartas da noite anterior e as horas mal dormidas produziam certa enlevação. Deveria ter chegado em casa e caído na cama, ao contrário de ficar horas na internet entretido com os blogs. Sorriu ao lembrar do recado encontrado no seu último post.

Na chácara, tudo era verão. A sensualidade da luz, das cores, dos movimentos da natureza a entrar-lhes pelos sentidos. O caseiro que lhes veio entregar as chaves da casa e que não se despachava. O desejo transformando seus corpos em ímãs e eles tendo que inventar uma força centrífuga.

- Vamos dar uma volta, Otávio, ter contato com a área?

- Posso levar vocês onde quiserem. Atalhou o caseiro.

- Não é preciso, Seu Lourival. Pode ficar descansado, não queremos incomodá-lo. A gente se vira. Nosso negócio é aventurar.

Os dois caminharam lado a lado, até desaparecem no bosque. O barulho das águas do rio, o canto dos pássaros, o vento nas folhas, o cheiro da ordem natural, o gosto macio dos lábios se absorvendo. As línguas disputando espaços e o digladiar dos corpos acalorados.
Jardel se desvencilhou da contenda, despiu-se e pulou na represa que se formava ao pé da cachoeira. Otávio não deixou por menos. Eram dois meninos gravitando em torno de um sentimento. As quedas d’água a lhes bater nos músculos como se massageassem fibras que se mantinham num contínuo arroubo.

O sol, ao se pôr, veio surpreendê-los nesse enlevo. Era hora de se prepararem para acender a lâmpada da noite.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

21. Angústia


Daydreamer

Sittin' on the seat

Soaking up the sun

He is a real lover

Makin' up the past…


A música tocava e um desassossego existencial invadia Otávio. Eram perigos, riscos que estavam além de serem surpreendidos por alguém que entrasse naquele quarto ou que adivinhasse o que ali ocorria por ter ouvido algum barulho. O silêncio dos corpos colados, o calor das carnes apenas aplacava sua inquietude. O que o oprimia? A sua felicidade nunca seria completa? Aceitava que seus limites se davam pelas circunstâncias que o encerravam em seu provincianismo e tinha curiosidade em saber o teor das angústias vividas pelos homens das metrópoles.


- Animado para nosso final de semana? Perguntou Jardel, lembrando-lhe do compromisso nos próximos dias.

- Claro.

- O Lalo me emprestou a chácara. O argumento é que vamos pescar.

- Isso quer dizer que vou cair na sua rede? Brincou Otávio.

- Não, não. Eu é que vou ser fisgado pelo seu anzol! Riu Jardel.

Na mesa de jogo, ele e o sargento jogavam contra o Lalo e o Oliveira, o outro militar. Entre um descarte e outro, Otávio percebia que a filha do Lalo, olhava insistentemente para Jardel, que os assistia a jogar, enquanto surpreendia a mulher do Oliveira olhando, de vez em quando, furtivamente para ele.

Depois de algumas rodadas, algumas taças de vinho, ele e seu parceiro ganhando por pequena vantagem, o Lalo perguntou:

- Já ouviram a piada do cara quando descobre que é viado?

- Não. Completou o seu parceiro. Conta aí.

- O cara quando descobre que é viado passa por três fases. Primeiro vem o choque, depois acha que é chique e por último, passa o cheque.

Todos riram. Otávio e Jardel se olharam. As mulheres que prestavam atenção pelo modo como foi anunciada a piada, riram também.

- Ser viado agora é moda. Aqui mesmo na cidade, vocês já viram quanto viadinho por aí?


Acrescentou o Oliveira, visivelmente alterado pelo vinho.

- E o pior é que junto com isso vem uma desgraceira toda, é prostituição, droga, e crime. Não é sargento?

- Não sei não...

O Lalo, virando-se para Jardel, mudou de assunto:

- Então quer dizer que vocês amanhã vão pescar?

- É, vamos!

- A gente podia se preparar e ir com eles, Oliveira? Quem sabe no domingo?

Jardel e Otávio se olharam de novo. O Lalo não deu trégua e continuou:

- Sabe aquela dos caras que iam pescar pra fugir das patroas?

- Já tinham um combinado com o caseiro, cada um levava uma gostosona e levavam ainda uma de sobra pro caseiro. Continuou o Oliveira.

- Pois é. Um dia, na última hora, sem que tivessem tempo de avisar o tal caseiro, as esposas cismaram de ir e não houve quem fizesse elas desistir. Quando chegaram, o caseiro não acreditou, chamou todos num canto, olhou bem pra cara deles e falou: “Mas que bando de puta feia vocês trouxeram dessa vez!”

Novas risadas.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

20. Córrego pro rio, rio pro mar


Como é possível conter um ribeiro que, tendo brotado entre penhas, nos cimos de montes, procurando o desnível se precipita pelo vale? Seria possível represar toda a água no topo de uma cadeia de montanhas? Considerando ser Jardel a principal nascente desse regato, o que ele trazia engrossando o curso caudaloso de suas águas? Poderia canalisar somente o filete de água desejado, separando-o de outras fontes? Otávio pensava sobre a intimação que acabara de receber. O telefone tocara e fora atender imaginando ser Jardel, mas não era o moço e sim o pai.

- Quero sua presença hoje à noite aqui em casa. Vamos ter mais uma rodada de cartas. Convidei mais uns amigos e já estou preparando um churrasco...

- Bem, sargento...

- Veja lá o que vai me dizer...

- Digo que aceito!

Ana Luísa ligou logo depois. Ficou feliz pelo desfecho com a mãe e tentou amenizar-lhe a preocupação.

- Não há motivos para ficar peturbado! Todo pai conhece o filho que tem. Ele já deve saber o porquê da sua aproximação e se te convidou, ele está dizendo que te aceita, que fica feliz...

- Isso me deixa mais inquieto ainda...

- Bobagem, se joga!

Pouco depois das 19 horas, ele aporta na casa do sargento, depois de avisar a mãe onde ia. Impossível que ela imaginasse que, estando em casa de um militar, estaria envolvido com atos ilícitos.

Na casa do sargento, além de D. Elizabeth e Jardel, duas outras famílias. O Ezequiel, um jovem militar, e sua esposa, a quem Otávio não conhecia; o Lalo, do escritório de contabilidade, Inezita, a esposa, e Beatriz, a filha, uma moça de dezenove anos.

Mal chegou, o sargento ofereceu-lhe uma cadeira, mas antes que se acomodasse, Jardel o chamou:

- Vamos para o meu quarto, quero que você ouça as novas músicas que baixei da internet... E dirigindo-se para Dona Elizabeth: Mãe, vou fechar a porta para não atrapalhar... Qualquer coisa é só bater...

Assim que a porta os colocou em recinto fechado, todo o corpo de Jardel colou-se em Otávio que não pôde resistir... As bocas uniram-se... As almas escaparam-se-lhes embendo-se no beijo ardente... Jardel apenas ergueu o som para abafar os ruídos e, como os músculos se dilatassem pelo calor, fugiu-lhes o mundo ao redor e as contrações musculares contínuas exigiram que se amainassem as velas e deixassem se conduzir pela correnteza, tal como líquidos represados que, por uma pressão natural, atravessam esfíncteres e derramam-se com abundância por tecidos rochosos.