segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

6. Na sorveteria


No balcão, uma profusão de cores e sabores o contrariava. Manga, a rainha das frutas tropicais! Sua boca salivava quando lembrava que viera atrás de uma preferência, mas não a encontrara. Para não ter de voltar para casa, serviu-se de sorvete de creme e sentou-se em uma das mesas.


Estava absorto no seu descontentamento, quando sentiu uma mão no ombro esquerdo. Era Maria Luísa com a taça de sorvete na mão e sorriso nos lábios.

Falavam da vida de solteiros, daquilo que lhes ensinaram como normal e do que, com esforço, ambos estavam precisando adaptar quando um rapaz se aproximou para falar com ela.
Surpreso por ainda não o conhecer e também por que o moço era exatamente o tipo que mexia com sua fantasia, ele sentiu como se uma lufada de vento refrescasse aquele ambiente de deserto.

- Jardel... Otávio... Otávio... Jardel... Ela os apresentou.


- Senta aqui com a gente... Otávio disse.


O moço se serviu, voltou e sentou-se à mesa:


- Não vou atrapalhar o papo?


- De maneira nenhuma... Na verdade, a gente está precisando de novidades pra animar a conversa.


- Não sei se vou poder colaborar, mas de qualquer forma, se não tiverem compromisso, posso deixar em aberto uma promessa pra logo mais à noite. Vou fazer uma reuniãozinha lá em casa. Que tal?

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

5. A fogueira


Ingênuo, narrativo e romântico demais, desinteressante... Foram alguns termos que apareceram na expressão da crítica. O que diriam naquela época se soubessem que também era autobiográfico? Os julgamentos iriam corroer ainda mais suas expectativas. Pensando nisso, foi que parou de escrever.

Mas a vida é pragmática, feita de continuidades e descontinuidades que lançam qualquer pessoa na sua própria fogueira todos os dias. Ao reencontrar seu passado, ele então se viu defronte das chamas como se fossem espelho. Tudo tão planejado, tudo tão cômodo, tudo tão superficial. Seu apetite pela vida roncando no estômago, uma necessidade fundamental de dar sentido ao mundo e a si mesmo.

Para onde estava caminhando? Duas lacunas existiam dentro dele: o amor e a literatura, ou seja, ambicionava romances cujos fios urdissem tramas com sua vida. O calor aumentava ainda mais a sensação de que algo estava faltando e a perspectiva da solidão crescia à sua frente.

Como não visse rumo para nenhum refrigério naquele momento, resolveu tomar um sorvete. Poderia encontrar algum conhecido para falar sobre amenidades. Afinal morava em uma cidade que não possuía trinta mil habitantes, ele conhecia mais da metade da população.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

4. O primeiro beijo


Como a lua cheia escondida atrás de grossas nuvens encontra naquele relance em que o céu se abre o olho d’água que a reflete, ou como dois seres da mesma espécie se reconhecem no ermo de multidões que se arrastam pela terra, eles se avistaram pela primeira vez em uma praça.


Rui viera passar o feriado prolongado em casa de parentes e, com seus dezenove anos de rapaz habituado às experiências de uma grande cidade, não podia imaginar que encontraria Vinícius, quando aceitou o convite do primo Adílio para visitar aquela que ele imaginara ser uma cidadezinha qualquer.


Como a lua, a vida também é cíclica e naquela sexta-feira da paixão, eles não sabiam que, finda a procissão, se encontrariam novamente no baile de aleluia. Tal como um espetáculo de teatro em que o público ao se assentar na platéia se depara com dois personagens em cena, que se portam de tal maneira que se pode adivinhar o que já se passou entre eles, quem os observasse naquele segundo encontro, poderia notar ali a tensão.

O que a princípio poderia se desvanecer atrás de partículas de água e gelo contou com a atuação de um vento forte que avivou o luar. Foi Adílio quem os apresentou um ao outro. Um relâmpago cruzou o céu.

Vinícius não podia imaginar que o que trazia tão represado em suas couraças corporais fosse, a força de estar em face de alguém que espelhasse sua ânsia, sofrer um derramamento que inundasse todo ambiente e Rui, já tendo vivido situação semelhante com outros rapazes, não pode evitar que sua sede fosse absorvendo aquele líquido transparente fluidificado entre seus olhares. A saliva que encharcava o deserto arenoso de cada um deixava para os entendidos na linguagem do alumbramento do amor a percepção do que andava a roda entre eles.

Um movimento ritmicamente estruturado e ao mesmo tempo estático, suplicando chuva e evocando o futuro, podia se notar entre os dois moços. O discurso de seus corpos condensava-se e rapidamente transmutava água em fogo, organizando mundos.

Fugiram então do salão para a cachoeira. Ali colaram suas bocas numa tentativa de aplacar a incandescência de seus corpos. As línguas eram dardos que se acariciavam. No bosque que os rodeava sentiram a chuva sobre seus corpos, enquanto o sangue era impetuoso dentro deles.

A cor branca e rosada do domingo os veio encontrar de mãos entrelaçadas. A ameaça da separação deixava a certeza de que eram asas de certa ave, duas manchas paralelas formadas por penas coloridas e brilhantes.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

3. Remissão


Existe maneira mais eficaz de fechar alguém para o mundo do que fazer com que se sinta excluído, humilhado em sua competência, ou com seus pendores íntimos negados? Voltou às cartas que tinha encontrado junto com o diário. Sombreou-lhe o rosto uma saudade. Um desassossego visceral querendo tornar-se potência e a lembrança de uma lua minguando no céu.


Aquelas cartas ele as trocara com pessoas com as quais formara um clube literário. Todas interessadas em escrever ficção e o sonho: conseguir um editor para seus escritos. Mas, antes que viesse quem se interessasse por suas produções e antes que conseguissem notoriedade no mundo das letras, as correspondências começaram a diminuir. Em meio às discussões sobre técnicas e linhas teóricas que o grupo deveria seguir para construir uma identidade, não encontrou abertura para afirmar seu desejo de escrever folhetins em que homens que desejavam outros homens se reconhecessem.

Encontrou entre aqueles papéis o motivo do rompimento definitivo, o conto que escrevera para o exercício combinado em conjunto.