segunda-feira, 26 de maio de 2008

19. Ao que virá!

- Sente-se e coma uma fatia. Era a voz da mãe, que lhe produzia incômodo.

- É estranho que a senhora me convide para isso.

- Bem, você me desrespeitou...

- Se a conversa vai por aí, é melhor nem começarmos. Só passei para pegar algumas roupas...

- Fique. Não há um meio de nos reconciliar?

- Sim, há. É só você não forçar a barra...

- Acho horrível quando você fala assim, mas vou fazer um esforço.

O que fazer daí em diante? Qualquer palavra era um risco.

- Deliciosa!

- Obrigada!

Foi ao quarto, precisava descansar. Deitou-se, passou por um cochilo e acordou com o telefone vibrando sobre a mesa de cabeceira. Era Jardel querendo saber se já estava instalado. Ao ter conhecimento da reconciliação, perguntou se gostaria de sair para conversar e ficarem juntos. Otávio se desculpou e preferiu ficar em casa. Ainda estava abalado. O outro disse então que um plano lhe passava pela cabeça, passarem juntos o final de semana em uma chácara.

Segundos de silêncio e, antes que Otávio dissesse algo, Jardel acrescentou:

- Sei que seu momento é difícil, mas não me diga que você está pensando em recusar a possibilidade?... Não está com saudade das minhas músicas e dos meus drinks?

- Aceito.

- Ok, então descanse e me ligue amanhã para conversarmos.

A noite desceu e ele absorto pensando em tudo. Aquele rapaz em sua vida, aparecendo de repente, como num passe de mágica! Tudo o que ele procurava! E o acirramento do conflito com a mãe? Estava com receio de enfrentá-lo. Quando haveria de pôr nele um ponto final?

As horas se lhe foram navegando na internet. Acessou seu blog que permanecia sem nenhum comentário. Postou mais um recado. Nele relatava o conflito que estava vivendo. Porém de que adiantava redigir esse memorial eletrônico, se ninguém o lia. Sua intenção, quando o criou, era postar crônicas do seu dia-a-dia para exercitar a escrita e se quisesse um feedback, era preciso comentar as páginas dos outros. Mas pedir a atenção dos outros o fragilizava.

Mas daquela semana em diante não poderia mais ser o mesmo. Era preciso se estabelecer, jogar-se no mundo, sair da inércia. Escolheu aleatoriamente um dos muitos sites que visitava para, pela primeira vez, postar um comentário. Abriu o blog do Mans. Leu os posts do dia. O glamour e a tragédia: um falava do Oscar 2008 e o outro da morte de Heath Ledger, o eterno Ennis Del Mar, de Brokeback Mountain, como dizia Mans. A impossibilidade de ser feliz! Lembrou-se da solidão que lhe invadiu ao assistir ao filme, esse sentimento que aprisiona e acaba com a vida. Entristeceu-se. Pensou em Jardel. No convite que lhe fizera. Sorriu. Escreveu seu recado e deitou-se para dormir.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

18. Entre o que é tortuoso e a torta


Às três da tarde, depois de almoçar um sanduíche na lanchonete do bosque, foi encontrar Maria Luísa e Jardel na sorveteria. Ao vê-lo abatido, quiseram saber o que havia acontecido. Sabendo da situação, os dois ofereceram suas casas até que se resolvesse o incidente.

Tudo era muito delicado, ele entendia a preocupação da amiga e daquele rapaz que tinha sido a grande alegria de seus últimos dias, mas sentia vergonha do que lhe tinha acontecido, estava com raiva da mãe e não queria envolver ninguém na história. Sugeriram então que ficasse num hotel da cidade por um ou dois dias. Ele concordou com a idéia.

Em um momento de descontração, Jardel gracejou dizendo que a coisa podia não ser tão ruim quanto se pintava.

- Há males que vêm para o bem. Será que vamos ter um lugar para a gente se encontrar.

Maria Luísa então quis saber da novidade, que já deduzira pelo telefonema na noite anterior. Conhecia Jardel há pouco e não lhe passou pela cabeça que era gay.


- Para falar a verdade, disse ela, você estava na minha lista.

- Amiga! Vai ter que ficar pra outra encarnação. Caçoou Jardel

Ela contou por que não fora à reunião em que os dois puderam se encontrar. Acaso das circunstâncias ou predestinação? O pai não estava bem e ela preferiu ficar em casa. Otávio aproveitou para alertar que não podiam dar vez ao azar. Era preciso que ela soubesse que estava envolvida na história com os pais de Jardel e era necessário que ela e Jardel combinassem também com Adriana, já que Otávio não a conhecia.


- Não acho uma boa idéia. A Adriana iria querer saber o motivo e não sei se seria interessante contar a ela. Avisou Maria Luísa.

- E se um dia ela se encontrar com o tenente e Dona Elizabeth ou ligar pra casa deles e o assunto vier à tona? Insistiu Otávio.

- Isso tem pouca possibilidade de acontecer. Concluiu Jardel.

- Estou tentando evitar situações constrangedoras. Continuou Otávio.

- Relaxa. Aconselhou Maria Luisa. Você está muito tenso. Quer controlar tudo. Dê uma chance para o inesperado. Veja que coisa boa aconteceu para vocês!


Riram e as horas se passaram como um alento para Otávio, mas ele teria que voltar para casa para pegar algumas roupas.


Quando se despediram, Jardel pediu que quando já estivesse instalado no hotel, que ligasse para se encontrarem. Poderiam passar mais algumas horas juntos para que Otávio não sentisse tão mal. Ele sorriu com o ato de carinho. Já não era mais alguém completamente só.

Ao chegar em casa, foi direto ao quarto e encontrou-o completamente arrumado. Na cozinha, a mesa estava posta e a mãe, sentada à cabeceira, silenciosa, esperava-o para o lanche da tarde com a torta de maçã que era a sua preferida.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

17. No meio do redemoinho.


Ele nada respondeu. Saiu desorientado. Ganhou a rua. Satisfazer os gostos da mãe, desde muito criança, sempre foi para ele uma violência. Os faniquitos dela eram constantes. Bastava ser contrariada. Mas agora não podia mais. Vários episódios passavam-lhe pela cabeça. A ira avolumava-se em seu corpo. Tinha vontade de voltar a casa e dizer inúmeros desaforos àquela mulher... Estourava de raiva. Andava pelo bairro como se movesse em espiral.

Parou em uma panificadora para o desjejum. Quem o visse naquele momento, adivinharia logo que era alguém em queda. Decidiu que não voltaria mais para aquilo que até agora tinha como seu lar. Mas o que faria?

O seu rendimento de todos os meses estava comprometido com o financiamento do imóvel que comprara na cidade. Ainda mais, tinha acabado de fixar contrato por um ano com o inquilino. Poderia rescindi-lo? Sim, mas teria que pagar uma multa que não lhe era possível. Fazia contas. O dinheiro que lhe sobrava do salário não era nada. O aluguel que recebia também não era um valor que lhe pudesse garantir todas as despesas se morasse sozinho.

Vender o carro! Era isso que iria fazer. Andaria a pé pela cidade, seria dono de seu próprio destino. E chafurdava novamente na mágoa que era maior do que seu corpo. Procurava pensar que tudo corre no mundo da melhor maneira possível. Era hora! Mas precisava ser daquele modo? E enquanto o inquilino não desocupasse a casa e enquanto não vendesse o carro para quitar a multa para onde iria? Onde moraria? Como iria se virar com o pouco dinheiro que lhe restava? Se pudesse contar com alguém! Pensar em Jardel lhe dava alento.

Perambulou pelas ruas. Decidiu caminhar pelas alamedas do bosque municipal. Esteve por horas olhando o lago envolvido em intrincados raciocínios. Por onde quer que fosse, como pano de fundo, havia sempre a lembrança de algo vivido, a figura da mãe e a dúvida: para onde iria?

segunda-feira, 5 de maio de 2008

16. O filho da mãe

Passou pelo portão e Jardel, com sorriso maroto, amparou-se no muro. Olhavam-se e sorriam-se. Ele caminhava olhando para trás. Que garoto mais louco! Por pouco não atropelou um andarilho que lhe pediu cigarro. Quando disse que não fumava, o pedinte lhe respondeu:

– Seu filho de uma puta, vai se fuder.

Caminhando pela rua deserta, sentia a brisa da madrugada batendo no rosto. Como seria seu futuro? Uma estrela cadente riscou o céu. Nem sabia o que pedir. Tudo estava tão certo.

Já em casa, rodou a chave na fechadura, forçou a porta, que não se abriu. Alguém teria passado o ferrolho? Invadiu-lhe uma imensa irritação. O jeito era acordar os pais. Foi até a janela do quarto, deu um toque na vidraça e chamou. O pai veio abrir a porta.

– Sua mãe deve ter passado o ferrolho sem perceber.

Agradeceu ao pai e dirigiu-se ao quarto com a pulga atrás da orelha. Ele sabia do que sua mãe era capaz.

Assustou-se com a cama desarrumada. Não havia lençol, nem coberta. O travesseiro estava sem a fronha. O sangue subiu-lhe a cabeça. Ela estava querendo castigá-lo por algo. Sabia que, acordada, ela espreitava-lhe as ações. Engoliria mais uma vez a obstinação desarrazoada daquela senhora?

Respirou fundo. Estava feliz. Fazia calor. Trancou a porta do quarto, despiu-se e deitou-se na cama desguarnecida. Havia uma excitação dentro dele. Rolava para cá e para lá, o pensamento encontrava ancorado num único porto: o corpo de Jardel. Demorou a dormir. Escutou um galo cantar, mais outro, um terceiro...

Acordou às 10 horas da manhã, fingiu que não estava desperto. Algo em seu corpo era rígido como o tronco da palmeira. Ficou mais um pouco na cama.

Levantou-se e vestiu-se. Como chegar à cozinha? Pelo barulho, seu pai já tinha saído para trabalhar. Foi ao banheiro, voltou ao quarto arquitetando o encontro com a mãe. Diria “bom dia”? Fingiria nada ter acontecido? Não foi preciso. Ela veio até ele.

– Quando é que você vai se dar ao respeito?

– A senhora pode dizer o que foi que eu fiz de errado dessa vez?

– Quase três horas da manhã. São horas de chegar em casa?

– Eu liguei avisando e, além disso, estou de férias...

– Sua amiga, ligou! Se não estava com ela, posso saber onde você estava?

– Até poderia... Mas não tenho a mínima vontade de dizer!

– Enquanto você morar nessa casa, você me deve satisfação.

– A senhora me cobra respeito, mas não se dá ao respeito...

– Já que você precisa tanto ser respeitado, você deveria procurar quem tolere as suas ações sem
pedir explicações, que faça as coisas pra você sem exigir nada em troca, que conviva com você sem te causar danos...

– A senhora está querendo dizer o quê?

– Que eu não sou obrigada a aturar um filho que sai de casa e não diz aonde vai e o que faz. Como vou saber se você não está metido com drogas, crimes?...

Ele não teve tempo de racionar.

– Você me conhece. Sabe do que eu sou capaz. Só uma mente depravada pode pensar isso! Sua loucura não suporta que ignorem os seus caprichos.

– Claro, apesar de tudo isso, sou a louca de quem você depende para tudo. Para deitar na cama arrumadinha, para ter a comida na mesa na hora certa, a roupa limpinha, cheirosinha, anotar os recadinhos que deixam para você... Mas no meu covil mando eu e, se não for assim, não posso lhe dar guarida!