quinta-feira, 20 de novembro de 2008

44. Uns e outros


- Estou dando um tempo...

- Mas nesse banco? Nessa praça?

- Por que não poderia? Tem algum inconveniente?

- Vai me dizer que você ainda não sabe?

- Sabe o quê? Do que você está falando?

- Há muita fofoca e muito falatório na cidade em torno desse banco...

Otávio já ia se zangando. Se o cara quisesse puxar conversa, que fosse mais direto. Não precisava ficar contando piada, ou inventando situações para que pudessem bater papo. Ia pedir licença para se retirar...

- É. Pelo jeito você não está entendendo, não é mesmo? O mais novo divertimento dos linguarudos desse lugar é fazer fuxicos dos gays da cidade, só porque há algumas semanas nós começamos a nos reunir todos os sábados aqui...

Otávio ficou em silêncio. O outro continuou:

- Você não sabia?

- Não.

- Não tem medo de ficar falado?

- Nem um pouco. Afinal, quem paga as minhas contas? Quem sofre as minhas dores? Quem goza os meus prazeres?

- Nossa, você é mesmo um cara de peito...

- Olha, Renato, nunca vivi uma situação tão difícil como a que estou vivendo agora e talvez, por

ter enfrentado minhas dificuldades, estou começando a ver algumas perspectivas na minha

vida...

- Ok. Já entendi. Acho que você tem toda razão.

- Quer saber do que mais?

- Se você quiser dizer...

- Hoje vou participar do encontro na praça. Quero ser o mais novo integrante?

- Não me diga que você também é gay?

- Por que o espanto?

- Você é uma pessoa tão reservada...

- Mas posso deixar de ser, não posso.

A conversa prosseguiu, outros rapazes chegaram, um grupinho foi se formando. Ao ver Otávio

ali, a princípio ficavam com cara de espantados, depois o gelo se quebrava e a o papo continuava. O grupo contava agora com uns dez rapazes. Os carros passavam...

- Os curiosos já estão vindo conferir. Disse Renato.

Uma nova voz veio se juntar ao grupo.

- Quero um lugar de destaque na vitrine. Era o Carlos, acabando de chegar. Ficar aqui na semana passada me rendeu dois encontros nesses dias...

- Com quem? Exclamaram os curiosos.

- E você acha que eu vou favorecer a concorrência? Eu só conto o milagre! O santo? Nem com reza!

- Egoísta! Exclamou o Júlio.

- Meu bem, você não está sabendo lidar com o seu borogodó. Um deles era um senhor respeitável dessa sociedade.

- Hum, tá podendo, hein, bicha!

- Claro, meu bem...

Nenhum dos rapazes que vieram se juntar ao grupo despertava o interesse de Otávio, apesar de várias trocas de olhares ocorrerem. Contudo, entre uma conversa e outra, a observação do movimento e as risadas ruidosas do grupo, por rápidos minutos, ele voltou a se perder em seus pensamentos. Do outro lado da rua, passou o lavador de carros, aquele com quem estivera no hotel. Passara com uma bíblia na mão, vindo da igreja em companhia de uma moça. Seria sua irmã, esposa, namorada? Uma tristeza quis invadir-lhe, mas o grupo o resgatou do ostracismo.

- A gente tá virando purpurina, tá todo mundo comentando!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

43. Confusos labirintos


A avenida estava movimentada. Otávio encostado no pátio da loja de conveniência observava os carros e as pessoas que passavam com a garrafa de cerveja nas mãos. Quem o avistasse logo notaria que seus olhos pareciam ver através da agitação uma outra realidade. Somente seu corpo estava presente ali, toda sua atenção se voltava para algo que apenas ele enxergava.

Na verdade, ele ouvia. Em seus tímpanos, a conversa com o pai repisava como se um aparelho estivesse com a tecla “repeat” acionada:

- Aqui você vai continuar se escondendo e se negando o tempo todo. Só posso te dizer que vou fazer o que puder para te ajudar.

- Obrigado.

- Mude-se daqui pra uma cidade maior, onde existam mais possibilidades. Eu posso te ajudar até

você se estabelecer novamente.

- Não sei se seria o caso.

- Aproveite enquanto você é jovem. A vida passa rápido.

Ele tinha agora mais essa possibilidade, mas a idéia de sair daquele lugar se misturava com a figura daquele pai que lhe apareceu de uma hora para outra, tão desconhecido dele, tão inesperado, que ele se perdia.

Resolveu sair daquele ambiente agitado. Pôs-se a andar por uma rua que cortava aquela outra tão animada pelos flertes da juventude da cidade. Mais adiante tinha uma pracinha tranqüila. Foi para lá que se dirigiu

Sentou-se em um dos bancos. Continuou se movimentando pelos canais de seu pensamento. O pai ainda se misturava com a possibilidade de se ausentar-se dali, quando ouviu:

- Sozinho por aqui?

Em pé à sua frente estava o Renato, o viado mais conhecido e falado da cidade.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

42. Filho de peixe...




Sábado à tarde, último final de semana de férias. Poucas perspectivas a não ser pensar no trabalho. Nem mesmo planejar algo para fazer à noite o excitava. Foi ao bar em que bebera com Frederico tomar uma cerveja.

Estava sentado com o olhar perdido em algum ponto da rua, pensamento longe. Alguém tocou seu ombro esquerdo. Virou-se. Seu pai o encarava.

- Mas que solidão é essa?

- Vim aqui passar umas horas.

- Sozinho?

- Não havia ninguém pra me acompanhar.

- Posso sentar?

- Claro.

O garçom aproximou-se trazendo um copo e perguntado se estava tudo em ordem, se desejavam algo. Responderam tudo estava bem.

O pai retomou a conversa.

- Por que você não volta pra casa? Morar em hotel é tão impessoal. Acentua a solidão.

- Pai, eu sempre fui um cara sozinho.

- Eu sei, sou seu pai. Você nunca teve muitos amigos.

- O senhor já se perguntou por quê?

Aquela pergunta lhe saiu de chofre. Ele não tinha mais nada para esconder. O pai que cuidasse com o que ia dizer.

- Sei que na situação em que você se encontra, pode ser fácil culpar sua mãe... Os escândalos que ela fazia as poucas vezes que seus colegas acidentalmente foram em casa, mas eu acredito que há uma série de fatores, inclusive me culpo bastante por isso. Talvez se eu tivesse sido um pai...

- Pai, não vai adiantar nada o senhor achar que poderia ter feito diferente. Agora já passou e só é possível pensar daqui pra frente e nunca daqui pra trás.

Ele se assustou com aquilo que lhe saiu da boca. Na verdade nunca tivera muita intimidade com o pai. Sempre o achara alguém acomodado e de poucas palavras. E se assustava com isso que agora estava saindo de sua boca soando como um conselheiro de auto-ajuda para alguém que nunca teve muita participação nos seus conflitos.

- E o que eu poderia fazer de agora em diante.

E agora? O que diria? Houve uma pausa entre eles até que o pai quebrasse o silêncio.

- Há alguma coisa que eu possa fazer por você?

Um pomo parecia enroscado na garganta de Otávio. Ele se esforçava para dizer algo, mas nada saía. Sua vontade era dizer tudo o que pensava daquele homem que durante sua vida inteira parecia-lhe ser um estranho em casa. Saindo de manhã para o trabalho, voltando à hora do almoço, depois se ausentando à tarde e voltando á noite para esconder-se na oficina que mantinha nos fundos da casa e ali ficar até poucos minutos antes de ir dormir. De repente sentiu vontade de chorar e uma lágrima chegou a ameaçar a sair-lhe pelas pálpebras, mas se conteve. O pai percebeu o estado embargado do filho.

- Depois que você saiu de casa, percebi o quanto eu fui um pai ausente. Tanto tempo tive pra estar junto de você e somente agora é que eu percebi que você era alguém dentro de casa, que era meu filho, que poderia precisar de mim... Você não podia ser diferente. Eu também sempre fui muito sozinho, apesar de ter vocês, mas hoje eu consigo entender que eu é que me isolei, que eu poderia ter feito diferente...

- Pai, já te disse, isso agora não vai adiantar nada...

- Sei lá poderia ter acompanhado mais a sua vida e a de seu irmão... Não sei o que poderia ter feito, mas poderia ter tentado...

Havia uma comoção entre os dois. A situação começou a ficar insustentável.

- O senhor fez o que foi possível fazer... Vamos parar de falar nesse assunto, porque daqui a pouco vamos parecer dois bêbados chorando numa mesa de bar e quem passar por aqui vai achar muito patético pai e filho chorando entre copos de cerveja.

- Você tem razão... Vai ficar muito estranho presenciar choro entre quem nunca teve muita intimidade, não é?

- Como?

- Você quer evitar o assunto. Acho que é por isso. Nunca tivemos muita intimidade. Nunca soubemos nada um do outro...

- ...

- Por exemplo, nunca me preocupei em saber de suas namoradas, se você estava gostando de alguém, nunca quis saber das tuas angústias...

- E de que adiantaria o senhor saber disso?

- Não sei, como eu disse, talvez pudesse ser diferente...

- Eu também não sei...

Para Otávio, a conversa estava ficando perigosa. Era melhor interrompê-la a qualquer custo. Precisava inventar uma desculpa para se retirar dali.

- Queria te perguntar uma coisa, mas não sei como fazer? Retornou o pai.

E essa agora?

- Tenho medo do que você vai perguntar. Respondeu Otávio de maneira automática.

- Por quê?

- Acho que tenho medo do que você pode pensar de mim... Não gostaria de mentir para preservar você.

De dentro dele vinha uma coragem que tornava seu rosto uma brasa viva.

- Você não precisa me preservar de nada... Ás vezes, penso que eu é que deveria ter te preservado de mim... A sua solidão me preocupa... Me sinto responsável por ela. Te acho muito parecido comigo.

- Não. Somos diferentes...

- Por quê?

- Como você mesmo disse, você era solitário tendo uma família... Quanto a mim – endureceu a fala – minha perspectiva é de pura solidão.

- Posso saber por quê?

- Sou gay. Como vou constituir família por aqui?