segunda-feira, 31 de março de 2008

11. O lapso


Cinco e meia da manhã. O dia amanhecia nublado e ele estava aéreo. Se fosse possível, impediria o sol de nascer.

Na calçada, Dona Margarida, a professora, que ele nem se lembrava que era vizinha do sargento, juntava as folhas. Uma lufada de vento as espalhou enquanto ele passava. Cumprimentou-a com educação, já que ela fizera parte de sua vida, e com receio, pois era uma testemunha. O que ela poderia pensar ou dizer, vendo-o sair dali?

Mas não conseguia se concentrar. As últimas horas ainda eram surpresas que se prolongavam na sua alma e já deixavam saudade. O que seria de sua vida depois daquele acontecimento?

Flutuava pelas ruas como um autômato.

– Valei-me, meu Santo Antônio! Minha eterna gratidão por ter atendido minhas preces!

Era sua mãe que, ao vê-lo entrar, desabou no choro.

– Mãe, pelo amor de Deus, o que aconteceu?

Ela somente chorava.

– Fala, mãe, o que aconteceu?

– Você quer me ver morta de preocupação? Sai de tarde e só volta no outro dia! O que significa isso, meu filho? Custava ligar? Avisar que ia passar a noite fora? Disparou as palavras como uma arma num campo de batalha.

– ...

– Sua mãe exagera. Eu não falei que não era nada? Também fui rapaz, sei como são as coisas... Interferiu seu pai.

– Não tenho sangue de barata... Que mãe pode dormir tranqüila com essa violência que surpreende em qualquer lugar?

Puxa vida! Que mancada! Somente agora ele se lembrava que tinha uma mãe e um pai que se preocupavam com ele.

– Mãe, mas por que a senhora não ligou no meu celular?

– Você ainda tem coragem de me perguntar isso? Passei a noite em claro ligando pra você.

Tentou puxar o celular do bolso. Onde estava? Quando o notara pela última vez? Na casa de Jardel. Ligou para seu próprio número. Chamava, mas ninguém o atendia.

– Fico imaginando o que foi que aconteceu pra você nem se dar conta de que perdeu o celular! Desafiou a mãe.

– Eu não perdi o celular, eu apenas esqueci na casa de amigos...

Trancou-se no quarto para evitar outras especulações.

O número do outro estava gravado na agenda do seu aparelho, mas também o sabia de cor. Ligou. Desligado... Dormia com certeza! Ainda que tivesse o número da residência, não iria incomodá-lo. Ligaria mais tarde. Era um bom pretexto para um novo encontro.
E se alguém que não Jardel o encontrasse? Ele haveria de chegar antes. Na cama, antes fechar os olhos, abraçado à lembrança de um corpo amoldado ao seu, ainda teve tempo para conjecturas: tudo caminhava bem? Ou eram aflições na iminência de acontecer?

segunda-feira, 24 de março de 2008

10. Planos que se cortam


– Nem sei o que dizer... Era a voz de Otávio quebrando o silêncio depois do inflamado beijo.

– Então não diga nada!

– Quero dizer... Acho que estou com medo... Qualquer palavra que possa sair da sua boca...

– E o que você acha que eu vou te dizer?

– Não sei... Mas o que quer que seja vai ter um grande impacto sobre mim.

– E se eu não te disser nada pra continuar te beijando?

– A gente não conseguiria manter o silêncio por muito tempo!

– Podemos tentar, o que você acha?

Os lábios intermitentemente colados. Depois, o jantar e as carícias. Ainda, os dois nus sobre o colchão de Jardel. Os corpos carnudos! Talvez ele tivesse se precipitado em manifestar sua inquietação e sabemos que ele estava querendo evitar o sofrimento. Tão envolvido estava em suas mais íntimas aflições: o outro não dizendo as coisas que ele gostaria de ouvir! E a verdade: os dois, perseguindo seus próprios desejos, gostariam de ter certeza de onde se encontravam. A música sublinhando a situação:

Give-me a heart attack, baby
Give-me a heart attack…


– Meus pais chegam das férias amanhã.

– A que horas?

– À tarde.

– Que pena! Isso quer dizer que a gente não vai poder mais ter encontros como esse? Tentou se assegurar de que se veriam outra vez.
– Claro que podemos! Vamos ter que descobrir outro lugar.

Jardel tinha sinalizado possibilidades. Otávio sorriu e continuou:

– Você acha que seus pais vão desconfiar?

– Não sei... Meu pai me acha um anormal... Ele vive me chamando de esquisito... Vive dizendo que não duvida que qualquer hora vou jogar na cara dele que tem um cara comendo o meu cu.

– ...

– Vamos mudar de assunto que isso me chateia...

– Não sei o que te dizer...

– Deixa pra lá. São implicações minhas com meu pai. Quero só pensar que eu arrisquei, apostei e deu certo.

– Não entendi.

– Na hora em que te vi, senti vontade de ficar com você. Inventei tudo aquilo porque estava a fim de você.

– Devo ter dado muita bandeira!

– Nenhuma... Só de olhar pra você me deu vontade de tirar sua roupa pra ver os mistérios que elas escondiam.

– Valeu a pena?

– Convencido... Está querendo elogio, não é? Mas se você quer saber, não posso reclamar de nada!

Sua insegurança amenizava.

segunda-feira, 17 de março de 2008

9. Enfim...


– Que tal mais uma dose?

Era impressão de Otávio ou Jardel estava querendo deixá-lo alcoolizado? Ele tinha medo de estar pintando os fatos com cores irreais. Se assim fosse, não seria tudo previsível demais? Outros investimentos resultaram em nada. Depois, caso suas expectativas não se confirmassem, ele teria lá que se resolver com sua melancolia. Tantos anos esperando...

– Em vez de limão, vou preparar com manga. Quer experimentar?

E essa! O que realmente estava acontecendo? Entre o sorvete e a batida, teria que crer no que diz o povo: “Deus que escreve certo por linhas tortas”?

– Claro. Nem se dava conta de que o que funcionava era o piloto automático.

– É muito bom!

– Se é você quem diz, tenho certeza de que vai valer a pena!

Há poucas horas quem diria que estaria naquela companhia? Os dois conversando, a música preenchendo o ambiente, o álcool tornando tudo volátil. Os gestos, as palavras, o pendor dos corpos!

– Deus do céu, oito horas! Como o tempo passa rápido! Acho que é hora de preparar alguma coisa pro nosso paladar.


Trimmm... Trimmm... Trimmm

– Maria Luísa avisa que não pode vir. Imprevistos!

E agora? O que pensar?

Os dois na cozinha, a chama acesa. Jardel aquecendo o azeite, ele finalizando o tempero. Nem sabia mais o que ouvia: música, respiração, coração palpitando! Ah, a languidez do álcool.

– É hora, Otávio! Pronto? Chamou o companheiro.

– Desculpe, estou tão alto...

– Não vem que não tem, meu bem! Nada de desculpas esfarrapadas. Não posso esperar um só minuto.

O outro era tão espirituoso!

Na falta de clareza para distinguir entre uma e outra coisa, as mãos se tocaram. Foi inevitável que os corpos se aproximassem e os lábios se unissem.


Em pé, pulsando entre eles aquela tensão agressiva.

segunda-feira, 10 de março de 2008

8. Sons e dádivas


Era o fascínio que o dominava. A cada momento havia uma novidade e a mais recente era essa: das bandas clássicas às últimas notícias do circuito alternativo, a cultura musical de Jardel era singular. Seu arquivo de músicas era uma fonte de emoções. Resgatava-lhe o passado e acenava para esfumaçados anseios. Gratificante ter um amigo que nos enche de som e promessas os minutos compartilhados!

Iniciaram-se os acordes da música.

All this feels strange and untrue
And I won't waste a minute without you
My bones ache, my skin feels cold
And I'm getting so tired and so old

– Isso é maravilhoso! Otávio disse.

Snow Patrol. Essa música já é bastante conhecida... Está tocando no Big Brother...

– Não me lembro de já ter escutado alguma vez...

The anger swells in my guts
And I won't feel these slices and cuts
I want so much to open your eyes
´Cause I need you to look into mine

– Acabei de eleger esse som como meu tema. Tudo a ver comigo. Vou lembrar de você toda vez que ouvir. Insistiu Otávio.
Jardel, afinadíssimo, acompanhava a banda:

Tell me that you'll open your eyes

Ele também passou a cantar:

Tell me that you'll open your eyes

Os dois repetiam juntos:

Tell me that you'll open your eyes
Tell me that you'll open your eyes


Veio a segunda parte da canção e Otávio não conseguiu se soltar dos vencilhos das velhas aspirações.

Get up, get out, get away from these liars
´Cause they don't get your soul or your fire
Take my hand, knot your fingers through mine
And we'll walk from this dark room for the last time

Every minute from this minute now
We can do what we like anywhere
I want so much to open your eyes
´Cause I need you to look into mine

Repetiram juntos:

Tell me that you'll open your eyes...

A banda terminou:

All this feels strange and untrue
And I won't waste a minute without you
Absorto, Otávio pediu:
– Repeat, please!

segunda-feira, 3 de março de 2008

7. Jardel



As horas que se passaram entre o encontro na sorveteria e a reunião se transformaram numa daquelas experiências em que não se percebe o tempo passar. Já que Maria Luísa tinha compromisso e só podia se encontrar com eles mais tarde, Jardel o havia convidado para continuarem juntos e prepararem o jantar para logo mais. Ele que há muito tempo não era convidado para nada, ainda mais por um rapaz bonito, simpático e espirituoso como aquele, não titubeou em aceitar.


Jardel era filho do Sargento Leônidas, que comandava o Tiro de Guerra da cidade nos últimos anos. Otávio, que já conhecia o pai, sabia agora que o motivo por não conhecer o filho era o fato de que estava fazendo odontologia em outra cidade. Agora que terminara o curso, desejava investir profissionalmente onde os pais estavam.


Quando Otávio soube que os pais de Jardel estavam de férias, perguntou quem eram os convidados. O outro foi lacônico:


- Nós três...


Saíram dali e foram às compras. Dividiram-se contas, flagraram-se olhares e os corpos se esbarravam, diria Otávio que propositadamente. Depois daquela surpresa, ele queria encontrar meios sobrenaturais ou artifícios hábeis para adivinhar que alguma coisa estava por vir. Ele tentava se segurar, mas sua imaginação era mais forte do que sua razão. O outro lhe fazia tanto bem que era possível dizer que se conheciam há anos. Como alguém que encontra um amante, ele sorria satisfeito. Tudo estaria apenas começando?