domingo, 29 de junho de 2008
24. E você, de que lado está?
- Você está chateado. Jardel quebrou o silêncio.
- Achei que podíamos passar o carnaval juntos.
- Mas essa viagem já está marcada desde o final do ano. É uma comemoração de amigos que estudaram juntos, viveram uma etapa da vida juntos, se formaram juntos...
- Sei.
- Não entendi... Isso foi uma ironia?
- Eu é que sou tolo e espero demais das pessoas!
- Juro! Tentei fazer da melhor maneira possível. Desde que nos conhecemos, estou pra te falar isso e não disse nada com medo da sua reação. Eu poderia te convidar pra ir comigo, mas...
- Eu não iria.
- Eu só queria que você entendesse que não há motivo pra ficar chateado, afinal quando eu combinei essa viagem, eu estava em outro contexto, eu sequer imaginava que ia te conhecer, queria apenas comemorar com meus amigos...
- Pára de falar desses seus amigos... Ok, eu já entendi, não precisa ficar se explicando!
- Você está com ciúmes!
- Como é que você se sentiria, se eu te trocasse pelos meus amigos...
- Acontece que eu não posso negar o passado. Ajudei a planejar, a escolher o lugar, investi dinheiro e expectativas nessa viagem...
- Está certo! Como você já deixou bem claro, se você relutou em me dizer que ia viajar no carnaval, porque tinha medo da minha reação, está na cara que, no meu lugar também ficaria chateado.
- Estou me sentindo um injustiçado!
- Não, não se sinta assim. Não há problema, não. Pode ir pra folia com seus amigos, não quero ser um empecilho.
- Escuta, Otávio, não tenho bola de cristal, não faz nem uma semana que a gente se conhece...
- Não precisa se exaltar! Eu já disse que você pode ir. Você já deixou as coisas bem claras... Eu sou mais um na sua lista, não é? O que você acaba de dizer faz todo sentido... Não faz nem uma semana que a gente se conhece e já estamos juntos, numa final de semana, numa chácara, tudo armado por você... Foi assim também quando você estava para se formar? Foi sua a iniciativa de viajar com seus amiguinhos? Como você iria passar uns dias no interior, depois de viver uma vida agitada em uma cidade maior? Aqui não rola nada, não é verdade? Você teria que ir à desforra no carnaval, não é mesmo? Agora como é que você vai abdicar do que tanto deseja na companhia dos seus coleguinhas?
- Você está sendo perverso. Está querendo me fazer sentir culpado?
- Não. Só estou querendo que você entenda o meu lado!
segunda-feira, 23 de junho de 2008
23. Roda viva
O corpo, a materialidade do corpo. A possibilidade de tocar, abraçar, encontrar-se no corpo alheio, dominá-lo ou deixar-se dominar, possuí-lo ou ser possuído. Além disso, a persuasão íntima de que assim o é, porque nós e o outro assim o desejamos e fruidores dessa situação, deixamo-nos permanecer em estabilidade de sermos amados, ou de termos certo poder de encantar e exercermos fascínio sobre alguém.
E catalisando todo esse estado, o corpo – materialização das almas. Expressando sutilizas e peculiaridades de cada ente, conduz a história, que no afã de ser tecida, cruza seus fios com outras expressões de vida.
Abraçados, mãos passeando sobre o cálido amigo, entre vales, planícies e saliências, não lhes era acessível outra coisa a não ser o prazer sinestésico do contato com o mármore animado. Sons que evocando cores, perfumes, sabores e calor epidérmico, reclamavam que o momento fosse eterno.
Lá fora o vento farfalhava. Os ramos das árvores agitavam-se. O mundo girava e um relâmpago cruzou o céu. A chuva principiou fina sobre o telhado e não cessou até o outro dia.
Acordaram satisfeitos. Era quase meio dia. Depois do desjejum, o que poderiam fazer juntos em um dia como aquele? Poderiam assistir a um filme, mas não haviam trazido nenhum. A música de Jardel silenciara. Jogar cartas? Não. Assistir televisão em final de manhã de sábado? Era o que lhes restava fazer dentro daquela casa!
- Vamos tomar alguma coisa? Perguntou Otávio.
- Oba, vamos começar cedo, mas enquanto isso, vou começar a preparar uma carne pro nosso almoço. Disse Jardel.
- Estive aqui pensando... O que a gente podia fazer no final da semana que vem, já que é final de semana prolongado? Não rola nada no carnaval dessa região.
Houve alguns minutos de silêncio.
- Pois é... Eu estava pra te dizer uma coisa, mas não sabia como falar. Desde a minha formatura, eu combinei com alguns amigos da turma de passar o carnaval em Ouro Preto...
- E você vai?
- Já estou com tudo pago...
- Ok.
Foi impossível para Jardel não perceber o desapontamento estampado no rosto de Otávio. Um
mal-estar tomou vulto no ambiente. Lá fora, a chuva caía torrencialmente.
mal-estar tomou vulto no ambiente. Lá fora, a chuva caía torrencialmente.
terça-feira, 17 de junho de 2008
22. Tudo vai bem
Céu azul, calor, o som do carro tocando:
Menino bonito
Menino bonito, ai!
Ai menino bonito
Menino bonito, ai!...
O final de semana prolongado se tornando uma realidade. Era como se planassem levados por uma corrente de ar quente que os fizesse dispensar motores. Para Otávio, o álcool ingerido no jogo de cartas da noite anterior e as horas mal dormidas produziam certa enlevação. Deveria ter chegado em casa e caído na cama, ao contrário de ficar horas na internet entretido com os blogs. Sorriu ao lembrar do recado encontrado no seu último post.
Na chácara, tudo era verão. A sensualidade da luz, das cores, dos movimentos da natureza a entrar-lhes pelos sentidos. O caseiro que lhes veio entregar as chaves da casa e que não se despachava. O desejo transformando seus corpos em ímãs e eles tendo que inventar uma força centrífuga.
- Vamos dar uma volta, Otávio, ter contato com a área?
- Posso levar vocês onde quiserem. Atalhou o caseiro.
- Não é preciso, Seu Lourival. Pode ficar descansado, não queremos incomodá-lo. A gente se vira. Nosso negócio é aventurar.
Os dois caminharam lado a lado, até desaparecem no bosque. O barulho das águas do rio, o canto dos pássaros, o vento nas folhas, o cheiro da ordem natural, o gosto macio dos lábios se absorvendo. As línguas disputando espaços e o digladiar dos corpos acalorados.
Jardel se desvencilhou da contenda, despiu-se e pulou na represa que se formava ao pé da cachoeira. Otávio não deixou por menos. Eram dois meninos gravitando em torno de um sentimento. As quedas d’água a lhes bater nos músculos como se massageassem fibras que se mantinham num contínuo arroubo.
Jardel se desvencilhou da contenda, despiu-se e pulou na represa que se formava ao pé da cachoeira. Otávio não deixou por menos. Eram dois meninos gravitando em torno de um sentimento. As quedas d’água a lhes bater nos músculos como se massageassem fibras que se mantinham num contínuo arroubo.
O sol, ao se pôr, veio surpreendê-los nesse enlevo. Era hora de se prepararem para acender a lâmpada da noite.
segunda-feira, 9 de junho de 2008
21. Angústia
Daydreamer
Sittin' on the seat
Soaking up the sun
He is a real lover
Makin' up the past…
A música tocava e um desassossego existencial invadia Otávio. Eram perigos, riscos que estavam além de serem surpreendidos por alguém que entrasse naquele quarto ou que adivinhasse o que ali ocorria por ter ouvido algum barulho. O silêncio dos corpos colados, o calor das carnes apenas aplacava sua inquietude. O que o oprimia? A sua felicidade nunca seria completa? Aceitava que seus limites se davam pelas circunstâncias que o encerravam em seu provincianismo e tinha curiosidade em saber o teor das angústias vividas pelos homens das metrópoles.
- Animado para nosso final de semana? Perguntou Jardel, lembrando-lhe do compromisso nos próximos dias.
- Claro.
- O Lalo me emprestou a chácara. O argumento é que vamos pescar.
- Isso quer dizer que vou cair na sua rede? Brincou Otávio.
- Não, não. Eu é que vou ser fisgado pelo seu anzol! Riu Jardel.
Na mesa de jogo, ele e o sargento jogavam contra o Lalo e o Oliveira, o outro militar. Entre um descarte e outro, Otávio percebia que a filha do Lalo, olhava insistentemente para Jardel, que os assistia a jogar, enquanto surpreendia a mulher do Oliveira olhando, de vez em quando, furtivamente para ele.
Depois de algumas rodadas, algumas taças de vinho, ele e seu parceiro ganhando por pequena vantagem, o Lalo perguntou:
- Já ouviram a piada do cara quando descobre que é viado?
- Não. Completou o seu parceiro. Conta aí.
- O cara quando descobre que é viado passa por três fases. Primeiro vem o choque, depois acha que é chique e por último, passa o cheque.
Todos riram. Otávio e Jardel se olharam. As mulheres que prestavam atenção pelo modo como foi anunciada a piada, riram também.
- Ser viado agora é moda. Aqui mesmo na cidade, vocês já viram quanto viadinho por aí?
Acrescentou o Oliveira, visivelmente alterado pelo vinho.
- E o pior é que junto com isso vem uma desgraceira toda, é prostituição, droga, e crime. Não é sargento?
- Não sei não...
O Lalo, virando-se para Jardel, mudou de assunto:
- Então quer dizer que vocês amanhã vão pescar?
- É, vamos!
- A gente podia se preparar e ir com eles, Oliveira? Quem sabe no domingo?
Jardel e Otávio se olharam de novo. O Lalo não deu trégua e continuou:
- Sabe aquela dos caras que iam pescar pra fugir das patroas?
- Já tinham um combinado com o caseiro, cada um levava uma gostosona e levavam ainda uma de sobra pro caseiro. Continuou o Oliveira.
- Pois é. Um dia, na última hora, sem que tivessem tempo de avisar o tal caseiro, as esposas cismaram de ir e não houve quem fizesse elas desistir. Quando chegaram, o caseiro não acreditou, chamou todos num canto, olhou bem pra cara deles e falou: “Mas que bando de puta feia vocês trouxeram dessa vez!”
Novas risadas.
segunda-feira, 2 de junho de 2008
20. Córrego pro rio, rio pro mar
Como é possível conter um ribeiro que, tendo brotado entre penhas, nos cimos de montes, procurando o desnível se precipita pelo vale? Seria possível represar toda a água no topo de uma cadeia de montanhas? Considerando ser Jardel a principal nascente desse regato, o que ele trazia engrossando o curso caudaloso de suas águas? Poderia canalisar somente o filete de água desejado, separando-o de outras fontes? Otávio pensava sobre a intimação que acabara de receber. O telefone tocara e fora atender imaginando ser Jardel, mas não era o moço e sim o pai.
- Quero sua presença hoje à noite aqui em casa. Vamos ter mais uma rodada de cartas. Convidei mais uns amigos e já estou preparando um churrasco...
- Bem, sargento...
- Veja lá o que vai me dizer...
- Digo que aceito!
Ana Luísa ligou logo depois. Ficou feliz pelo desfecho com a mãe e tentou amenizar-lhe a preocupação.
- Não há motivos para ficar peturbado! Todo pai conhece o filho que tem. Ele já deve saber o porquê da sua aproximação e se te convidou, ele está dizendo que te aceita, que fica feliz...
- Isso me deixa mais inquieto ainda...
- Bobagem, se joga!
Pouco depois das 19 horas, ele aporta na casa do sargento, depois de avisar a mãe onde ia. Impossível que ela imaginasse que, estando em casa de um militar, estaria envolvido com atos ilícitos.
Na casa do sargento, além de D. Elizabeth e Jardel, duas outras famílias. O Ezequiel, um jovem militar, e sua esposa, a quem Otávio não conhecia; o Lalo, do escritório de contabilidade, Inezita, a esposa, e Beatriz, a filha, uma moça de dezenove anos.
Mal chegou, o sargento ofereceu-lhe uma cadeira, mas antes que se acomodasse, Jardel o chamou:
- Vamos para o meu quarto, quero que você ouça as novas músicas que baixei da internet... E dirigindo-se para Dona Elizabeth: Mãe, vou fechar a porta para não atrapalhar... Qualquer coisa é só bater...
Assim que a porta os colocou em recinto fechado, todo o corpo de Jardel colou-se em Otávio que não pôde resistir... As bocas uniram-se... As almas escaparam-se-lhes embendo-se no beijo ardente... Jardel apenas ergueu o som para abafar os ruídos e, como os músculos se dilatassem pelo calor, fugiu-lhes o mundo ao redor e as contrações musculares contínuas exigiram que se amainassem as velas e deixassem se conduzir pela correnteza, tal como líquidos represados que, por uma pressão natural, atravessam esfíncteres e derramam-se com abundância por tecidos rochosos.
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