segunda-feira, 28 de julho de 2008

28. Um passo, um trilho


Não queria pensar no relacionamento que mal se esboçara e já tinha dado provas de que se esfumaçara pelo ar, na mãe que preferia vê-lo morto a não o ter dentro do exato desenho de sua loucura, no que iria fazer sem a infra-estrutura que seus pais lhe ofereciam e que o fazia permanecer instalado e acomodado com uma logística falsa. Recusando-se a reter na mente qualquer fiapo de idéia que lhe viesse a tirar do seu estado de indolência, adormeceu.

Acordou no meio da tarde com o celular tocando. Maria Luisa o convidava para um sorvete. Ela precisava lhe contar as novidades. Logo que o viu, a moça percebeu que ele não radiava o brilho dos últimos dias. Otávio resumiu os acontecimentos e finalizou resignado:

- Melhor assim! Agora sou realmente um pós-moderno, um cara obrigado a me inventar a cada momento. Toda vez que piscar os olhos, vou lembrar que tudo o que eu me agarrava: família, um lar, um companheiro não existe mais e vou ter que buscar algo novo...

- Ainda bem que você ainda tem um emprego! Mas, sinceramente, espero que você encontre algo que te conforte...

- Vamos ver. A sorte está lançada! E você? Estou curioso pra saber as novidades...

- Bem, amigo, ao contrário de você, estou nas nuvens!

Ela então começou a lhe contar sobre o final de semana. Fora na casa da tia na sexta e encontrara lá um amigo do primo. Conversas, olhares, risos e um convite para sair. À noite, o beijo.

- Sabe aqueles caras que têm uma pegada que te faz arrepiar a nuca?

- Puxa, gostei! Se joga!

Ela estava tão entusiasmada que ele se entreteceu com a animação da amiga, mas quando chegou ao hotel, já tinha voltado ao velho hábito de planejar o momento seguinte. O que faria?

No hall, encontrou o Breno, o dono do estabelecimento, um pedaço de mal caminho, que ostentava uma grossa aliança no dedo anular da mão esquerda. Procurou passar despercebido, não queria justificar o motivo por que, morando na cidade, estava hospedado em um hotel.

- Otávio, soube que você está hospedado aqui...

- É, tive uns contratempos em casa. Preciso cuidar da minha vida, morar sozinho...


- Escuta, tenho uma proposta pra te fazer. Estou pensando num projeto e você é a pessoa ideal pra elaborar pra mim.

Como ex-atleta do vôlei da cidade, queria montar uma parceria com o poder público. Pensava grande, inclusive em ter na cidade uma equipe que viesse disputar a liga nacional.

- Podemos fazer uma permuta com sua estadia aqui. O que você acha?

- Acho ótimo. Falou com a pessoa certa.

terça-feira, 22 de julho de 2008

27. O salto



Meio sonolento, sem coragem para abrir os olhos, pôs-se a escutar um ruído. Estaria sonhando novamente? Não, a manhã já ia alta, ele estava acordado. Alguém cochichava: “Ó mãe de Deus e minha mãe, livrai-o do fogo do inferno. Se preciso for, leve a alma do meu filho para o céu, mas não o deixe cair em tentação.” Abriu os olhos e flagrou a mãe aos pés da sua cama, de mãos postas, com um rosário entre os dedos. Ela se surpreendeu com o acordar do filho e saiu do quarto.

Uma preguiça enorme tomava conta de seu corpo. Doía-lhe ter que abrir os olhos e pensar. Se pudesse, queria ser desprovido de algumas faculdades humanas naquele momento. Virou-se para o lado e permaneceu imóvel. Ouviu os passos da mãe que retornou ao quarto e repetiu ave-marias a não mais acabar. Ele fazia um esforço meditativo para que nenhuma representação mental se formasse em sua mente.

Quando a mãe se retirou, cansado de estar na cama, ele decidiu:

- Não posso mais estar assim. Preciso sair dessa zona de conforto que não me é nada confortável.

Levantou-se, mas não saiu do quarto. Abriu o armário, olhou as roupas nos cabides, escolheu um traje. De quantas malas precisaria para retirá-las dali? Além das roupas o que mais levaria? Meia dúzia de livros e alguns objetos pessoais. Apenas isso.
Foi à cozinha, tomou café preto. Nenhuma palavra com a mãe que ia e vinha naquele espaço como quem tinha a segurança de existir pairando sobre qualquer mudança.
Ganhou a rua e foi direto ao hotel. A atendente era a Margarida, velha conhecida sua. Estudara com ela no grupo e desde a adolescência trabalhava naquele estabelecimento. Acertou permanência por uma semana, uma vaga na garagem. Durante esse tempo resolveria o que fazer.

Voltou para a casa dos pais, fechou-se no quarto, dispôs as roupas em duas malas, os objetos pessoais em uma sacola de mão. Dos livros, escolheu três e deixou os outros na estante.
Ao sair, a mãe perguntou:

- Onde você vai?

- Viajar.

- Pra onde?

- Não sei, no caminho decido...

- Mas agora, assim, desse modo, sem nenhum planejamento...

- Uma viagem dispensa esses protocolos!

- Ah, meu Santo Antônio, valei-me. Livrai-me das minhas aflições!

- Dispense também o santo dessa obrigação... Eu ligo quando chegar, se é que isso vai te deixar mais calma.

- Quanto tempo vai demorar?

- Também não sei...

No hotel, estacionou o carro na garagem, acomodou as malas no quarto, fechou a porta, deitou-se e pôs-se a fazer o exercício de não pensar em nada...

segunda-feira, 14 de julho de 2008

26. O céu da Pátria nesse instante!


Os olhos de Otávio enxergavam através da tela do computador algo que já era passado. Rememorava. Mais uma promessa que se extinguira. Curta possibilidade que se desenhou no céu da pátria, por um instante. Diante da tela do computador, pouca atenção prestava nos blogs que acessava.

O domingo de sol tinha terminado de modo inesperado. Ele até se atreveu a ir ao rio pescar, mas, como Jardel acordara passando mal, vieram embora mais cedo. Largaram o Lalo, o Ezequiel e as respectivas famílias na chácara e puseram-se na estrada. O silêncio que os oprimia dominando cada quilômetro percorrido. Depois daquela situação o que restaria?

Ouvia ainda as risadas de Lalo e Ezequiel sobre as piadas que contavam entre uma e outra lata de cerveja. Ficavam martelando em sua cabeça. Será que tinham curiosidade de viver uma relação homossexual? Uma das anedotas lhe parecia sintomática:

- Então, a mulher mandou avisar o compadre que o marido sairia de vigem. Na hora marcada, o compadre chegou na casa da comadre, escutou a água caindo do chuveiro e pensou: “É ela que está se aprontando!”. Tirou a roupa, deitou por cima dos lençóis e ficou ali sentindo nas partes baixas a aragem que entrava pela janela. De repente a porta do banheiro se abre e quem entra no quarto? O marido da comadre! “Mas compadre o que significa isso?” “ Sabe, compadre, estava em casa, numa angústia danada e não sabia o que se passava. Foi aí que, num relance, eu finalmente compreendi. Tenho que te contar, não posso mais esconder isso de você.” “Mas o que foi, compadre? Isso é motivo pra você ficar pelado em cima da minha cama?” “Compadre, não zombe de mim, mas morro de vontade de dar pra você!”

O que era uma relação senão uma luta? Começava pela atração e caminhava para onde? Para a debilidade, a desconfiança, o medo de perder, de ser trocado por outro, de ouvir um “não”, ou para a resignação dos desejos... Não queria entrega integral, mas certa consideração. O que custaria a Jardel uma renúncia? Nem precisaria uma renúncia, poderia ser apenas uma reformulação de planos, até que pudessem viajar juntos...

Seria possível nova conversa entre os dois? Um pedido de desculpas? Quem deveria fazer esse pedido? Ele deveria pedir desculpas? Por que, se lhe parecia que o que o outro esperava de um relacionamento era estar com ele e ao mesmo tempo ser livre para estar com quem quisesse? Uma conversa honesta e franca resolveria? E o que cada um faria com seus sentimentos, quem abriria mão do bem próprio?

Ás vezes achava que isso é que dificultava dois homens às propensões do amor. Homens não foram educados para cederem, para o gesto carinhoso, terno, meigo. Quem iria se desviar das normas preestabelecidas, dos seus domínios? Era muito individualismo para que isso fosse uma solução!

E o sonho de se ter um companheiro? A vida não poderia ter mais encontros do que desencontros? Não haveria alguém no mundo que satisfizesse uma razoável percentagem das suas aspirações? Que fosse capaz de abdicar das seduções do mundo para amá-lo do jeito que era?

No meio da noite acordou de um sonho esquisito. Ele e Jardel pilotavam dois jatos. Voavam paralelamente a uma grande velocidade. A princípio, olhavam-se e sorriam. Aos poucos o gelo foi se acumulando sobre as aeronaves e os pilotos já não podiam se ver. Seguiam apenas as coordenadas dos radares.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

25. Tempo brusco


- Ok. Entendo o seu lado... Você fantasia um mundo de acontecimentos, de acordo com o que bem entende sua cabeça, sem saber quem são meus amigos, de acordo com o que você faria no meu lugar... Então por que você faria isso, você transfere pra mim tudo isso pra me chantagear e eu ficar sujeito ao controle dos seus caprichos, às suas excentricidades... Jardel argumentava.

- Não precisamos discutir mais... Já disse que você pode ir... Otávio encerrou a discussão.

Jardel pôs-se a temperar a carne e Otávio pegou uma cerveja e sentou-se na varanda, observando a chuva que caía.

Dentro de cada um havia um vulcão, uma vontade enorme de voltar à discussão, mas lutavam para se conter. Cada um monologava à sua maneira, perdidos em um ressentimento amargo.

Otávio imaginava o outro viajando com os amigos de faculdade. Quem seriam? Era preciso dizer algo? Alguém que fosse gay iria para o carnaval com héteros? Ele já podia imaginar qual a finalidade da viagem. Lembrava outros relacionamentos. Tudo era uma maravilha quando estavam sozinhos, mas quando os amigos e conhecidos eram acrescidos na relação, o caldo entornava.

Por outro lado, Jardel gostaria de entender se, para namorar alguém, teria que abdicar do que já vivera, daquilo que em outros relacionamentos se tornara um tormento. Ter somente amigos em comum. Será que não seria possível uma vida independente? No fim, era tudo a mesma coisa: um querendo controlar o outro, um querendo subjugar o outro. Relacionamentos gays e héteros eram todos iguais. Dois fechados num mundinho, respeitando mutuamente medos e fobias.

Estavam ruminando os pensamentos, quando o caseiro, o Lourival, apareceu no meio da chuva, embrulhado numa capa amarela. Encontrou Otávio sentado na varanda:

- Com esse tempo nem dá pra pensar em pescar, não é mesmo?

- É.

- E se vocês estão pensando em ir embora, é bom esperar um pouco. Do jeito que tem chovido, o carreador fica tão encharcado, que o carro patina e não sobe...

- Tudo bem...

- Sair pra pescar e ter que ficar dentro de casa não é bom, né? O homem tentava puxar conversa, mas Otávio permaneceu calado e com a cara que estava, o outro desistiu.

- Bem, se precisar de alguma coisa, é só chamar...

- Tudo bem.

Otávio foi para dentro.

- Precisa de ajuda?

- Não, pode deixar que eu termino.

Em momentos distintos, os dois tentaram puxar conversa, mas algo havia se rompido e por mais que tentassem resolver a situação o que haviam ouvido um do outro ainda os humilhava.

A tarde avançou e com ela veio o almoço. A comida deliciosa enroscando na garganta. A presença do companheiro, que já fora uma promessa, era agora uma ameaça. Por que estarem juntos, se um voto, um juramento, poderia se tornar um pesadelo?

Passaram a beber e o som da chuva no telhado era quebrado por algumas frases que se calavam rapidamente. Assim chegou também a noite e os dois foram dormir como dois desconhecidos. Algo havia realmente se rompido.

Otávio despertou no meio da noite e a insônia o pegou. Levantou-se e foi para o sofá assistir televisão. Acordou com pessoas entrando pela casa, fazendo alarde. Era o Lalo e o Ezequiel, com as famílias.

Meio desorientado, ouviu:

- Rapaz, acorda, que a chuva passou. Vamos aproveitar a água barrenta, que esse córrego aí no fundo está cheio de bagres! Vai ser boa a pescaria.